20 agosto 2010

POR QUE NÃO?

Li num habilíssimo texto de Geneton Moraes Neto a seguinte frase — entre tantas que deveriam entrar numa coletânea de uma disciplina chamada Filosofia do Jornalismo:

Além de repórter que tira leite de pedra, Joel [Silveira, “o maior repórter brasileiro”, sobre o qual eu já havia escrito aqui] cultua o “prazer do texto”. O que ele escreve é uma mistura feliz de Jornalismo e Literatura. Por que não?

27 julho 2010

O VERÃO E O FUTEBOL

Se depreende, no geral, que minha opinião sobre a bella stagione, como equivocadamente chamam aqui, é muito próxima da pior possível. Há um outro fator, além do climático, que reforça essa idéia negativa que tenho do verão, especialmente aqui na Itália: o grande vácuo de futebol que a época representa. Não que a oferta de jogos que se dispõe no Brasil melhore muito as coisas. Sempre achei tremendamente melancólico aqueles jogos do Gauchão entre o final de janeiro e o início de março — e se poderia pressupor corretamente que acho melancólico o próprio campeonato —, aquelas partidas com um quê de irreal em tardes horrendamente tórridas pelo interior gaúcho. Não deploro o Gauchão, nada disso. Penso apenas que, assim como é, não tem mais razão de ser e que o fato de estar comprimido entre janeiro e abril torna as coisas muito mais caricatas do que já são (saudades dos jogos em Bento Gonçalves com os times em manga comprida...). Mas isso é outro assunto. No Brasil, enfim, para o bem ou para o mal, temos os regionais e a Copa do Brasil preenchendo os pacatos meses de janeiro e fevereiro (que se jogue no calor desumano de 40ºC é um detalhe para alguns). O fato é que nossa “existência futebolística” — da qual, como todas as paixões, não se pode abrir mão — fica ao menos entretida com jogos pretensamente importantes.

Aqui não, e isso não chega a ser uma crítica. O calendário é bem organizado — ao menos o italiano; o discurso teria de ser outro se falássemos da Inglaterra e suas trocentas copas nacionais — e religiosamente na metade de maio todos os clubes encerram suas atividades para que seus jogadores rolem nas areias da beira-mar mundo afora. Exceção feita a períodos especiais, como ano de Copa do Mundo, o assunto futebol entra numa longa distensão e chega a hora da imprensa esportiva européia usar a imaginação e os diagramadores recorrerem a fotos de página inteira. Grosso modo, entre o final de maio e meados de agosto abre-se um buraco negro pelo qual o futebol (o de campo, a sério, à parte obscuros amistosos e as intermináveis lenga-lengas das contratações) é sumariamente tragado. Alguns campeonatos, como a Serie B e C, tem suas fases decisivas no início de junho, mas isso normalmente não envolve grandes públicos (porque trata-se de clubes provincianos) e até mesmo a mídia perde a concentração.

Então pode-se considerar um homem (ou mulher) de sorte aquele fã de futebol que tem à disposição um verão inteiro de jogos arrastados e interrompidos para a hidratação dos atletas. Ao menos não são condenados a — falo por mim e por todos os inimigos do verão — mais um tormento. Pior que Grêmio x Avenida ou Inter x Universidade em Cidreira é aturar quase 90 dias de calor de estirpe norte-africana sem um único jogo decente para assistir.

GO AWAY

O que todas as capas de livros deveriam dizer | criação do Zach's Dunce Corner sobre o design original da Penguin Books. (http://adidaq.tumblr.com)
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25 julho 2010

HORA DO NOTICIÁRIO

Assisti novamente a V for Vendetta [V de Vingança] e começava a preparar um texto. Então reli uma bela entrevista (que já havia sugerido há três anos em Cantofabule, parte 1 e parte 2) com Alan Moore, o criador da história original, e me dei conta de que o máximo que poderia fazer seria analisar o filme enquanto tal — e minha idéia estava longe de ser essa. Meu intento era dar relevo à densidade da história e das idéias contidas nela, que ultrapassam em anos-luz, na minha opinião, a forma como a trama é contada. Acontece que Moore esbraveja nessa entrevista contra a adaptação para o cinema, entre outros motivos muito mais mundanos, exatamente porque alteraria a maneira como é narrada, deformando o sentido da história. Então cancelei o projeto do texto — que será realizado mais tarde, abordando a versão original, para publicação em Herodotos Report — e me bati atrás dos quadrinhos, que foi por ali que V for Vendetta veio ao mundo, pensada com carinho para isso. Me dei ao trabalho de me exigir a versão original, em inglês, temendo que me escapasse qualquer coisa. Porque V for Vendetta me marcou profundamente, e torço muito para que a bronca de Moore com a versão cinematográfica, que foi por onde conheci a história, seja “apenas” um ranço artístico e pessoal. Ele admite que não viu o filme: sua indignação existe por razões, até onde se sabe, de (des)entendimento com os detentores dos direitos já que, coisa muito básica, simplesmente era contra uma adaptação cinematográfica de sua obra. O fato é que logo nas primeiras páginas de V se percebe a mudança de tom e significado de muitos elementos; e assim, como aprecio a criatividade e o talento autoral, não escrevo uma única linha novamente sobre a história até conhecê-la em seu estado natural e original. V for Vendetta tem uma idéia bastante densa por trás, o que suponho esteja seriamente em risco ao ser jogada para cá e para lá e “adaptada” em novos formatos.

O que não poderia deixar de apontar são os pequenos textos introdutórios à versão original da HQ — são assinados pelo ilustrador David Lloyd e, obviamente, pelo próprio Moore e por sorte mantidos em todas as reedições e inclusive na versão brasileira. Acho que significam muito — além de representarem uma ironia quanto ao fato de que me preparo para, talvez, me mudar para a Inglaterra — e por isso os reproduzo abaixo.

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Algumas noites atrás, eu entrei num pub a caminho de casa e pedi uma Guinness.
Não olhei no relógio, mas sei que ainda não eram oito horas. Era uma quinta-feira e eu podia ouvir a televisão ao fundo, passando o mais recente episódio de EastEnders — um seriado sobre o dia-a-dia de trabalhadores alegres e descontraídos em um bairro mítico e decadente de Londres.
Sentei-me a uma mesa e peguei um exemplar de um jornal gratuito que alguém havia largado por lá. Era uma edição que eu já havia lido. Não trazia muitas novidades. Pus o jornal de lado e resolvi sentar ao balcão.
A noite não estava movimentada. Dava para ouvir o murmúrio distante da TV em meio ao burburinho das pessoas no balcão e ao estalar das bolas de bilhar.
Depois de EastEnders, veio Porridge — a reprise de uma sitcom de um prisioneiro alegre e descontraído numa prisão vitoriana decadente, e por conviniência, nada opressiva.
Quase imperceptivelmente, escorria bebida dos dosadores de garrafas tombadas atrás do balcão. Gotas de uísque e vodka se formava e caíam sem alarde diante dos meus olhos.
Terminei o copo. Ergui a cabeça e o barman notou meu movimento. “Guiness?”, indagou ele, já alcançando outro copo limpo. Confirmei com a cabeça.
A mulher do barman chegou e pôs-se a ajudá-lo no atendimento aos clientes que entravam e saiam.
Às 8:30, após Porridge, veio A Question of Sport — um show de perguntas estrelando celebridades esportivas alegres e descontraídas, respondendo sobre outras celebridades esportivas, muitas das quais também alegres e descontraídas.
Reinou o bom humor.
“Vou avisar ao barman sobre os dosadores vasando”, pensei.
O Noticiário das Nove entrou logo depois de A Question of Sport... ou, pelo menos, 30 segundos antes da televisão ser desligada e ceder lugar a música pop alegre e descontraída.
Olhei pro barman. “Só metade desta vez”, disse eu. Enquanto ele enchia o copo, indaguei-lhe solenemente porque havia desligado justo no noticiário. “Não reclame comigo. Foi a patroa”, respondeu num tom alegre e descontraído, enquanto o alvo de seu comentário labutava num canto do balcão.
Os dosadores vazantes deixaram de ter qualquer importância pra mim.
Terminei minha cerveja e parti, quase certo de que a TV continuaria desligada o resto da noite. Afinal, depois do Noticiário das Nove, viria Os Meninos do Brasil, um filme com poucos personagens alegres e descontraídos, que trata de um bando de nazista criando 94 clones de Adolf Hitler.
Em V de VINGANÇA, também não há muitos personagens alegres e descontraídos; e é pra gente que não desliga na hora do noticiário.

David Lloyd
14 de janeiro de 1990

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Eu dei início a V de Vingança no verão de 1981, durante um feriado na Ilha de Wight, que dediquei inteiramente ao trabalho. 

Minha filha caçula, Amber, tinha poucos meses de idade. Só fui terminar o roteiro ao fim do inverno de 1988, após um hiato de quase cinco anos desde o cancelamento da revista
Warrior. Amber agora tem sete anos. Sei lá por que mencionei isso. É apenas um daqueles fatos nada relevantes que brotam, de repente, em nossa cabeça com força inesperada, levando-nos a meditar.

Juntamente com Marvelman (Miracleman nos EUA), V de Vingança representa minha primeira tentativa de produzir uma série em continuação. Minha carreira estava apenas se iniciando. Por essa e outras razões, nos primeiros episódios, certas partes soam estranhas quando avaliadas à luz do desenvolvimento posterior da série. Espero, no entanto, que você tolere qualquer deslize e concorde que foi melhor apresentar os primeiros episódios sem alterações em vez de erradicar todos os traços de imaturidade criativa.

Há também certa inexperiência política de minha parte, muito evidente nos capítulos mais antigos. Em 1981, o termo “inverno nuclear” ainda não havia se tornado corriqueiro e, embora meu palpite sobre as catástrofes climáticas chegasse bastante perto da realidade, a trama ainda assim sugere que uma guerra nuclear poderia deixar sobreviventes. Pelo que sei hoje, não é o caso.

Também se evidencia uma dose de ingenuidade na nossa suposição de que seria necessário algo tão dramático quanto um conflito nuclear para lançar a Inglaterra no fascismo. Se bem que, fazendo justiça a mim e a David, os quadrinhos daquela época não traziam previsões melhores ou mais precisas sobre o futuro de nosso país. O simples fato de que boa parte do cenário histórico advém de uma suposta derrota dos Conservadores nas eleições gerais de 1982 deve dar uma idéia de como estávamos estagnados e éramos ineptos em nosso papel de Cassandras.

Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está iniciando seu terceiro mandato e fala confiante de uma liderança ininterrupta dos Conservadores no próximo século. Minha filha caçula tem sete anos, e um jornal tablóide acalenta a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados das tropas de choque usam visores negros, bem como seus cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade até mesmo como conceito abstrato. Só posso especular sobre qual minoria será o alvo dos próximos ataques. Estou pensando em deixar o país com minha família em breve. Esta terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não gosto mais daqui!

Boa noite, Inglaterra. Boa noite BBC local e V de Vitória.
Olá, Voz do Destino e V de Vingança. 


Alan Moore
Northampton, março de 1988

17 julho 2010

VINHOS, ELITISMO E COTNARI

Citar vinhos, falar por falar de tipos, safras e variedades faz um bom elitista, ouvi dizer. Na verdade, assim como aconteceu com a cor azul — que se viu completamente expropriada de seus significados para traduzir no sistema de códigos apenas uma ideologia de direita ou, na melhor das hipóteses, um situacionismo, o que por sinal me ofende —, gostar de conhecer vinhos arregimenta ascos de intensidade variada entre os não-adeptos. Talvez essa seja a enésima vitória daqueles que combatem a divisão de classes mas que para isso fazem questão de ver o mundo sempre dividido em classes, forçando a barra até enquadrar tudo num materialismo doentio (mesmo que eu seja da opinião de que luta de classe existe e é muito provavelmente a mãe de todos os problemas do mundo; o erro, a meu ver, está em resumir tudo a isso). Ver num apreciador normal de vinhos necessariamente um elitista ferrenho é como ver gigantes em moinhos de vento. De fato existe esse fenômeno do que chamei de expropriação do significado, mas isso acontece externamente à coisa em si, não por causa dela: não é o vinho — ou charutos, ou antiguidades, ou qualquer outra coisa “fina” — que faz um esnobe, mas sim o uso hermético que esse faz na esperança de lhe conferir distinção e poder simbólico. Coisas que Freud explica. Ou deveria.

A PROPÓSITO...
Conheci aqui na Itália um vinho que atiçou minha curiosidade por alguns anos. O Brasil, além de ser no todo um parco consumidor (com uma vergonhosa média de 7 a 15 litros por habitante ao ano), se satisfaz com o pouco de vinho de boa e média qualidade que produz. O resultado é que não é fácil encontrar variedades e marcas menos famosas no mercado “para gente comum”, ou seja, para não-ricos — mesmo que estejamos falando de países tradicionais na cultura vinífera. Transbordando de romenos como qualquer outra cidade italiana, Milão me presenteou com uma comunidade bastante ativa desses europeus simples mas culturamente riquíssimos. Encontrei na metade do caminho entre minha casa e a residência de amigos uma loja de produtos gastronômicos da Romênia onde reluziam na prateleira as minhas tão desejadas garrafas de Cotnari. Esse vinho, que leva o nome da pequena cidade no norte do país onde é produzido, me chamou a atenção quando ainda estava no Brasil por dois particulares. O primeiro é ser o rótulo internacionalmente mais representativo dos vinhos da Romênia, país que me desperta interesse e que só não faz parte do primeiro escalão vinífero do mundo porque é um país pobre — a Hungria, por exemplo, apesar de produzir menos e de seus vinhos serem de menor qualidade, desfruta de uma certa fama no mercado europeu, principalmente junto aos alemães. O segundo motivo de minha atração pelo Cotnari era a promessa de um vinho doce, mas perfeitamente equilibrado. Equivale a dizer que, mesmo com uma quantidade colossal de açúcar (cerca de 240 gramas por litro), não resulta em um vinho pesado ou enjoativo. Evidentemente precisa ser colocado no seu contexto, que, para dizer o mínimo, não é acompanhar um prato de massa ao molho ou carnes. Prometia notas de mel, e essa era a minha busca. Por mais que eu imaginasse um vinho bom, me surpreendi positivamente: o Cotnari (principalmente a variedade Tamaioasa Romaneasca, mas também a Grasa) é uma verdadeira delícia. Na minha (ainda longínqua) situação ideal, acompanha uma torta como sobremesa, todos os dias. Ou mesmo puro, depois do jantar.

21 junho 2010

MILÃO À NOITE, DE BICICLETA

Fico pensando em como resolver um problema tão banal quanto complicado. Quando estiver no Brasil, o inevitável fatalmente vai acontecer e irão me fazer a pergunta cuja resposta desafia minha compreensão: “o que tem de diferente aqui e ?”. Diferente terá o sentido implícito de melhor, mas minha resposta irá resumir tudo. , é óbvio, fará referência direta à Itália, onde vivo há dois anos. Mas, ao menos para mim, tem uma conotação maior e quase automática, aumentando o seu espectro até englobar toda a Europa Ocidental — onde, na imaginação das pequenas burguesias da periferia do mundo, se vive invariavelmente bem, cercado de classe e estilo, fartura e acesso a tudo. É uma resposta complexa, que no entanto precisa ser simplificada quase a ponto de se tornar padrão, e a maneira ideal e minimamente sábia como deveria ser formada é de um mistério ainda intransponível para mim.

Encontrei dia desses um dos fragmentos que vão compôr o mosaico da resposta. Nada muito transcendental, mas acho que representa um bom ponto de partida — ou de chegada, não sei bem. Havia me planejado para sair para correr, percorrer algumas quadras, tocar o Arco da Paz do Parco Sempione e voltar para casa. Troquei de estratégia em cima da hora, desencorajado pelo ar quente da noite de quase verão. Peguei a bicicleta e saí pela cidade, sem rumo específico, apenas ziguezagueando em zonas que mapeei mentalmente, áreas já visitadas mas sobretudo as não exploradas. Uma deriva sobre duas rodas.

Fui arrastado para dentro de alguns quartieri dos quais conhecia apenas as vias principais. Me deixei atrair por ruas tranquilas, iluminadas de maneira harmoniosa, com fachos de luz de um tom caramelo a intervalos regulares. Nas profundezas dos bairros havia muito pouca gente na rua. Aqui e ali a calçada era ocupada por mesas e cadeiras de bares, sempre lotados. Mas, no geral, ninguém. Quase não havia tráfego: aqui se anda de bicicleta na própria via e era como se fossem feitas, àquela hora, para as bicicletas e não para os carros. 

Empregava uma velocidade constante, minha primeira motivação era fazer exercício. Tive que alterar esse comportamento, diminuir a marcha para depois acelerar, olhar em volta, tirar uma das mãos do guidom, girar os pedais para trás enquanto mergulhava numa descida, erguer todo o corpo sobre os pés, sentir o vento no rosto. A cidade pedia que desse atenção a seus prédios, suas luzes, suas pessoas, seus vazios. Milão é bela e agradável e a máxima consciência que se pode ter disso, acho eu, é andar de bicicleta sem rumo, numa noite amena.

A parte da resposta sobre as qualidades que existem aqui e somente aqui é simbolizada no ato simplíssimo de deslizar sobre duas rodas por uma cidade bonita sem ser importunado por ninguém e de forma que se possa apreciar cada esquina, cada vista. É preciso mais que beleza urbana para tornar possível um despreocupado passeio ciclístico à noite. O mundo precisa — ao menos no contexto mais imediato e próximo — estar disposto de uma tal maneira que não se torne um exercício de risco, de extrema necessidade ou de ociosidade malévola. Mas que seja apenas um momento em que é possível esquecer que a vida é dura. Um momento de paz.

19 junho 2010

CONFORME-SE OU SEJA EXCLUÍDO

Subdivisions” é uma das mais felizes tentativas de resumir em música uma idéia extremamente antipática enquanto pertubadora, ainda que verdadeira e importante. Apareceu no nono disco da histórica e excelente (na minha opinião, à parte alguns álbuns infelizes) banda canadense Rush em 1982. O álbum chamava-se Signals e, mesmo que já estivesse impregnado daquela duvidosíssima estética da Década Perdida, com sintetizadores esquizofrênicos por todos os lados, é um dos clássicos do grupo. Acho extremamente eficaz as imagens e sensações que evoca. Transmite uma opinião — por sorte, de crítica — com as letras, obviamente, mas também com a tensão de toda a estrutura sonora, dos timbres à melodia. O assunto é de uma atualidade berrante, mas, como incomoda tremendamente afrontar a coisa (ou se ignora a existência dela), fico torcendo para que a próxima leitura do problema resulte numa música tão bacana quanto essa.
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Subdivisions 
(Alex Lifeson, Geddy Lee, Neil Peart)

Sprawling on the fringes of the city
In geometric order
An insulated border
In between the bright lights
And the far unlit unknown

Growing up it all seems so one-sided
Opinions all provided
The future pre-decided
Detached and subdivided
In the mass production zone
Nowhere is the dreamer or the misfit so alone

(Subdivisions)
In the high school halls
In the shopping malls
Conform or be cast out
(Subdivisions)
In the basement bars
In the backs of cars
Be cool or be cast out
Any escape might help to smooth the unattractive truth
But the suburbs have no charms to soothe the restless dreams of youth

Drawn like moths we drift into the city
The timeless old attraction
Cruising for the action
Lit up like a firefly
Just to feel the living night

Some will sell their dreams for small desires
Or lose the race to rats
Get caught in ticking traps
And start to dream of somewhere
To relax their restless flight
Somewhere out of a memory of lighted streets on quiet nights...

04 junho 2010

GHEA PODÈMO FAR!

Já contei em outro espaço como menosprezei Veneza até conhecê-la. E lamento muito incorrer num clichê aristocrático, mas descobri, pisando lá pela primeira vez, que Veneza é daqueles lugares que, se for o caso, amamos como se a tivessemos antromorfizado e humanizado. Não é apenas o peculiaríssimo espaço físico que seduz, obviamente não. Nem poderia ser a nefasta movimentação de turistas embasbacados e, na maioria das vezes, idiotas, que são atraídos mais pelo glamour que pela história e pela beleza. Para quem se pergunta e fica atento à resposta, a cidade emana uma energia estranha, misteriosa na medida em que não se revela por completo, uma beleza estonteante e uma cultura (no sentido mais amplo possível) encantadora. Lamento muitíssimo o pecado da pieguice, mas preciso dizer que coloquei Veneza no pedestal das paixões, das minhas paixões, e agora a chamo de minha cidade.

Unir duas paixões normalmente resulta em algo interessante. Já que todo lugar novo que conheço carrega aquele tal “potencial futebolístico” intrínseco — mesmo que seja um humilde clube que milita em divisões subterrâneas —, me pus a revirar a história do único clube de futebol de Veneza. O simples fato da cidade contar com um clube de futebol é já, por si só, um motivo de admiração. A trajetória de 103 anos do representante lagunar no calcio é repleta de peculiaridades, altos e muitos baixos, que em breve contarei num texto específico sobre a história do Venezia, se interessar a alguém (a mim, ao menos).

Por um desses estranhos encantos do futebol, adotei o clube lagunar como “do coração” (tenho esse insano costume de me afeiçoar a clubes de futebol dos quais conheço apenas o nome, o logotipo e o uniforme). Só Deus sabe exatamente o porquê, além do óbvio, ser de Veneza: as cores são uma lamentável combinação de preto, verde e laranja (o que, porém, tem uma explicação pontual), passou quase 70 dos seus 100 anos se debatendo entre as séries B e C, quebrou três vezes, mudou de nome e de escudo outras tantas e hoje amarga uma “humilhante” temporada (que se repetirá em 2010-2011) na quinta divisão italiana. Tem um único título decente, a Copa Itália de 1940-41 — uma temporada que, se sabe, apenas na Itália se conseguia jogar futebol.

Nunca tive aquele “orgulho bicho-grilo” dos admiradores do futebol riponga e kitch, como o bravíssimo e inspirador pessoal do Impedimento. O que também não quer dizer que fosse um deslumbrado devorador do marketing europeu. É muito justo orgulhar-se da simplicidade (o futebol incluído), mas nunca consegui olhar para Lajeadense x Cruzeiro-Poa com os mesmos olhos de Grêmio x Palmeiras ou Manchester Utd x Juventus — mesmo que, como todo maluco por futebol, olhasse qualquer jogo, inclusive XV de Jaú x Ferroviária de Araraquara nos tempos em que a Band tinha uma programação “de raiz”. Por um longo e lento processo que passa por captar o âmago da coisa (que é basicamente, o futebol como prazer de jogar e de assistir) e culmina com o Venezia, agora me vejo esbravejando por causa das parcas informações que se consegue arrancar sobre as divisões inferiores de qualquer ponto do planeta, mesmo com a internet. Não saber como foi Venezia x Union Quinto pelos playoffs da Serie D italiana (5ª divisão) significa uma tensão difusa e uma dor etérea na boca do estômago.

John Foot, na sua magnífica obra sobre a história do calcio, elogiou com palavras agudas um livro escrito por dois historiadores e torcedores do Venezia: “o livro sobre futebol mais interessante publicado na Itália nos últimos tempos e, talvez exatamente por isso, completamente ignorado”. Chama-se Cartas da curva sul (Lettere dalla curva sud, no original), de Filippo Benfante e Piero Brunello — esse último, por sinal, professor na universidade de Veneza, estudou e publicou a história dos imigrantes italianos no sul do Brasil. Os italianos se referem à zona atrás dos gols como curva e está para nós também como a nossa “geral”, num sentido sociológico. O livro é, basicamente, o relato e o estudo da experiência de assistir às partidas do Venezia analisando toda a dimensão social, cultural, histórica e por aí vai. Esse texto todo é só para dizer o quão feliz fiquei em colocar, finalmente, as mãos nesse livro. Que, assim que terminar Gomorra, devorarei, de preferência antes da Copa começar — e que sem dúvida originará um texto realmente interessante.

P.S.: como relatado no livro, no estádio Pierluigi Penzo como de resto em toda Veneza e região, a linguamadre é o “dialeto” vêneto, e não o italiano. “Ghea podèmo far!” é uma espécie de “yes, we can” — como se pode intuir.

26 maio 2010

CRESCIMENTO E DECRESCIMENTO

"Enfim, observando-se atentamente, a riqueza tem um caráter bem mais patológico que a pobreza. A riqueza extrema constitui o flagelo principal da sociedade moderna. Em vez de aumentá-la ainda mais sob a alegação de remediar a pobreza, seria preciso atacá-la como uma doença perigosa mascarada pelo imaginário instituído do crescimento. Jean Baptiste Say enunciou a lei de que a felicidade é proporcional ao volume do consumo. Trata-se da impostura economicista e modernista por excelência. Durkheim já denunciava esse pressuposto utilitarista da felicidade como soma de prazeres ligados ao consumo egoísta. Para ele, tal felicidade não está longe de levar à anomia e ao suicídio. Majid Rahnema observa com pertinência:

A miséria moral dos ricos e poderosos – assunto-tabu na literatura especializada sobre a pobreza – curiosamente chamou mais a atenção dos romancistas, poetas e, é claro, dos próprios pobres que a dos sociólogos e economistas que a consideram fora de discussão. O estudo profundo das verdadeiras causas da miséria poderia, no entanto, mostrar que ela está exatamente no centro – se não for o centro – do assunto. 

Ele continua:

A miséria moral dos abastados, “vestida” com seus mais belos ornamentos e, portanto, bem menos visível do exterior, é paradoxalmente mais perniciosa do que aquela que afeta os indigentes: à obsessão propriamente patológica do mais-ter, ao desejo incessante de acumular para si e de retirar dos outros pelo simples prazer de exercer sobre eles um poder acrescentam-se fatores externos, tais como os muitos critérios de êxito social, a impiedosa dinâmica da competição, a regra de ouro do lucro a qualquer preço ou a mercantilização de todas as relações humanas.

É a miséria psíquica e espiritual dos saciados que produz no outro extremo da cadeia a miséria material dos excluídos, pois, numa sociedade que pensa que a vida é um combate e a morte, um fracasso, o remédio para a depressão psíquica é a excitação cujo exemplo é fornecido pela especulação da bolsa de valores. Essa dupla miséria é exacerbada pela publicidade, que é um meio de deixá-lo descontente com o que temos para fazer com que desejemos aquilo que não temos."

Excerto de O DECRESCIMENTO COMO CONDIÇÃO DE UMA SOCIEDADE CONVIVIAL
de Serge Latouche, professor emérito da Université Paris-Sud 11

25 maio 2010

DIVIDE ET IMPERA

Os romanos já sacavam da coisa. Mais de um milênio depois, Maquiavel repetiu a noção com outras palavras e desde então se faz referência e reverência à sua sabedoria, bem como a quem se apóia nela. Muito justo, não fosse o fato de que, se tivéssemos aprendido algo e crescido como seres humanos, talvez não precisássemos adentrar os anos 2000 com a mesma filosofia.

De qualquer forma, aqui estão 10 preceitos básicos de como exercer um poder em nossos dias. Exercer aqui tem o sentido de manter um poder (ou vários concomitantemente), não necessariamente o poder. Me refiro em especial ao mais sofisticado poder de nosso tempo, que é o controle social, mas penso que tenha validade em vários outros campos. É caso de ideologia, mas na sua forma mais básica e menos visível possível, ao mesmo tempo em que essa ideologia colabora para fazer desse poder o mais ilimitado que se tenha conhecido até agora. Alguns dos 10 pontos são noções obtidas a partir da experiência pessoal, mas todos são (também e sobretudo) produtos da reflexão sobre a mentalidade contemporânea, observações da cultura e comportamento social de nossos dias e considerações de terceiros (imprensa, livros).

1.
Incentive e defenda os valores do individualismo, do egoísmo niilista e do hedonismo mais nefasto possível. Sublinhe a infelicidade das relações e a inclemência do mundo. Fomente a oposição e a negação em relação ao outro. Prometa sempre uma maior liberdade individual. Restrinja a liberdade individual através de complexos sistemas de alienação.

2.
Estimule a desconfiança e a difidência. Ressalte periodicamente a necessidade e utilidade desses sentimentos. Sugira e apóie a indiferença. Relativize problemas como a influência humana no equilíbrio ecológico.

3.
Desenvolva uma concorrência feroz e incondicional e justifique a desigualdade como sua consequência natural. Seja implacável com os fracos. Lembre Darwin. Cite apenas a minoria de sucesso.

4.
Desintelectualize tudo. Demonstre repetida e exaustivamente a futilidade de se adquirir conhecimento e a comodidade e conveniência da ignorância. Faça crer que qualquer forma de discernimento é prejudicial aos próprios interesses, desnecessária e que, em última instância, é perda de tempo. Enalteça a objetividade extrema, priorize as ciências exatas e promova uma desumanização do saber. Ridicularize a prudência, a solidariedade, a humildade e o interesse intelectual. Fique atento a novos talentos e arregimente-os, treine-os e enquadre-os — entretenha os demais.

5.
Mercantilize tudo, coisas e relações. Demonstre a inocuidade da corrupção moral. Promova o desvio ético mas defenda o sistema de comportamento. Ofereça novidades sob qualquer forma e estimule a necessidade delas. Faça venerar o mercado: incremente suas vantagens, esconda seus danos e o controle artificialmente. Enalteça o poder econômico e o dinheiro. Valorize a noção de serviço e satisfação pessoal.

6.
Estruture uma alienação quase total do poder, impedindo o exercício direto da vontade coletiva e individual. Crie instituições, entidades e personalidades jurídicas. Estabeleça hierarquias e burocracias. Constrinja à “fidelidade simbólica”, ou seja, o sentimento honroso e de gratidão em relação às instituições constituídas com o escopo de receber essa fidelidade. Desenvolva, amplifique, defenda e difunda o valor de “cumprimento do dever”. Incentive a identificação e o orgulho patriótico (regional, nacional ou em qualquer outro âmbito), bem como étnico, cultural ou de classe. Ofereça recompensas e premiações, incite à dedicação e ao sacrifício pessoal, mas monopolize a concessão de legitimidade. Crie símbolos que vinculem o grupo à entidade que deve concentrar a atenção. Apóie-se na tradição ou a ataque pormenorizadamente.

7.
Controle posições estratégicas da produção de bens simbólicos, dos sistemas mais complexos ao mais simples — a ideologia direcionada tende a se reproduzir autonomamente baseada na ignorância e na preguiça. Domine ambientes acadêmicos, profissionais de áreas importantes e meios de produção e sobretudo de comunicação. Manipule o conhecimento e a circulação de informação. Influencie decisões de alcance coletivo. (Impeça a aglomeração negativa: retire bancos das praças e dos campus universitários. Promova a aglomeração positiva: valorize bancos e praças de alimentação em shopping centers.)

8.
Desacredite posições antagônicas. Promova a desqualificação do interlocutor. Marginalize e ridicularize os opositores. Aplique penas e sanções severas e sistemáticas. Evite a propagação da oposição. Impeça o desenvolvimento de vias alternativas. Incentive idéias contraproducentes, mal-intencionadas e/ou deliberadamente errôneas e favoreça a difusão de equívocos sinceros.

9.
Confunda, disperse, despiste. Dificulte ao máximo o estabelecimento de conexões e relações. Desvie a atenção dos detalhes ou forje detalhes fictícios. Valorize a religião como sistema de valores coletivos e inalteráveis. Incremente substancialmente a importância de assuntos periféricos. Crie mitos e cenários artificiais. Invente inimigos. Difunda ruídos. Não mostre-se: permaneça anônimo e estabeleça bodes expiatórios.

10.
[Utilizando todos os preceitos acima mencionados] Identifique uma casta (ou grupo de castas), proteja-a e estimule o confronto entre todos os grupos da sociedade. Estabeleça rivalidades e ressentimentos. Ataque o sentido de coletividade e solidariedade mas fomente um sistema de colaboração ao interno da casta.

É possível que este texto sofra edições na intenção de atualizá-lo e completá-lo. Comentários, críticas, acréscimos e ponderações serão sempre bem-vindos.

20 maio 2010

O "COMUNICADOR"

No último domingo a Internazionale se sagrou campeã italiana (quinto scudetto consecutivo) e se vencer a Liga dos Campeões no próximo sábado, em Madri, contra o Bayern, José Mourinho deixa o futebol italiano. Deve levar sua rabugice e soberba para a capital da Espanha. É o que eu penso como jornalista e amante de futebol e seria capaz de apostar, digamos, 12 decadentes euros nisso. Também acho que, caso o clube de Milão perca essa final, o português vai embora da mesma forma. Meu palpite se apóia numa única verdade: Mourinho odeia a Itália — e, às vezes, parece odiar tudo que se mova ou respire.

Mourinho — digo isso de forma respeitosa e estudada — é um quase perfeito idiota. Não por odiar a Itália, que isso cada um é livre de fazer, mas por pensar que o futebol é mais um daqueles setores da vida humana (o enésimo) em que para ascender é preciso pisar no outro, rebaixá-lo, demonizá-lo, ridicularizá-lo, sobrepujá-lo, que se não o fizer antes alguém o fará mais cedo ou mais tarde e agir em função dessa preocupação. Natural que seja o pensamento dominante, na medida em que o mundo (salvo exceções honrosas) é uma grande porcaria exatamente porque esse pensamento é dominante. Mas o futebol é um jogo, fatalmente haverá vencedores e vencidos e se Mourinho não fosse praticamente um problema moral ambulante confiaria na sua imensa capacidade e qualidade e nos pouparia de um veneno que é muito comum em vários campos da existência, mas que no futebol não é assim tão frequente.

Não me entendam errado: não me julgo o defensor da moralidade e não estou querendo fazer de Mourinho um crápula absoluto. Acho apenas que ele sintetiza uma idéia. Uma idéia errada, pouco nobre (para dizer o mínimo), por mais que seja — e é — um fantástico técnico de futebol. Essa idéia, penso, quando aplicada ao mundo do business, ou na selva tropical, pode ser que dê muitos bons resultados, mas quando colocada no miolo do futebol acaba por turbá-lo.

Na Itália, o português se deu ao luxo de fazer coisas que não se permitia na Inglaterra, e isso diz muito sobre ele próprio e sobre os dois países, com aspectos positivos e negativos. A visão que se tem de Mourinho aqui é bastante complexa, mas poderia ser resumida em três noções básicas, às vezes intercruzadas numa mesma pessoa. 1) A veneração cega que “camufla” um comportamento duvidoso sob um manto de “polêmica” (“Mourinho é um grande comunicador”, é a frase favorita dessa facção). Para algumas pessoas, o técnico da Inter é um acréscimo ao futebol italiano porque vence e “tempera”, e ponto final. 2) Uma admiração distanciada, considerando que para o futebol vale a regra da concorrência “vença ou fique para trás”. Mourinho é um mal necessário. 3) Reprovação moral. Para Sandro Mazzola, ícone do calcio, por exemplo, fica difícil reconhecer o valor do esporte no comportamento do português. A melhor coisa a fazer então é uma distinção claríssima entre a pessoa e o profissional.

Talvez seja ranço de um velho que jogou “nos tempos do upa!” — e que tende por isso a interpretar o futebol moderno através de uma tecla SAP —, mas Mazzola foi um dos poucos a afrontar Mourinho nesses dois anos em que o português vive na Itália. Um dia, criticou o técnico da Inter por uma escolha tática. E voltou a fazê-lo depois que Mourinho deu o ar da graça, sendo agressivo e arrogante. O português perguntou em tom provocatório: “Mazzola por acaso é meu chefe?”. O velho jogador, que agora é um competente comentarista da Rai, devolveu: “Sou acionista da Inter. Sou sim. Também”. Mourinho não nos forneceu uma resposta. Raro.

Tudo bem que vença, que seja um dos profissionais mais bem pagos do planeta — é competente, estudioso, tem qualidade e é fiel ao seu grupo e aos seus em geral. Mas Mourinho, como disse, sintetiza um sentimento ruim para o futebol e para se exibir por aí. No início achei que poderia ser pieguice minha, depois percebi que mais gente via a questão assim. Não poucos. Talvez a chave da explicação seja a que sugeriu Jaime Pacheco, que inclusive e ao menos merece alguma consideração por ter feito do Boavista campeão português em 2001. Acho que ele tem razão.

 Foto: AFP 

18 maio 2010

CARROS

A Itália é o segundo país mais motorizado do mundo, atrás apenas dos “pais fundadores” americanos.  São pouco mais de 60 carros para cada 100 habitantes, enquanto a média européia (em dados de 2008) é de 46. Não surpreende portanto que uma de minhas primeiras surpresas quando cheguei aqui tenha sido a quantidade de automóveis circulando, mas sobretudo estacionados — nas calçadas, na faixa central, sobre os canteiros, praças e qualquer espaço exíguo e, muitas vezes, irregular. Um amigo um dia me disse a título de brincadeira que seria um favor se algum meliante brasileiro fizesse “desaparecer” alguns carros da rua em que mora.

O problema é crônico na medida em que a questão não se resume ao trânsito como efeito colateral do espaço urbano. É uma questão de comportamento. Sempre que me vem à mente esse assunto me recordo do “episódio do estacionamento norueguês (ou sueco ou dinamarquês, não lembro bem)” que meu camarada Eduardo Delamare me contou certa vez e que me causou grande impressão. Uma sua amiga, norueguesa (ou sueca ou dinamarquesa), ainda criança pequena, um dia acompanhou o pai ao trabalho. Iam de carro e, chegando muito cedo ao local, encontraram o pátio do estacionamento completamente vazio. O pai então manobra o automóvel sobre uma vaga muito distante da porta que dá acesso aos funcionários. A filha lhe pergunta intrigada se não seria melhor deixar o carro mais próximo da porta, assim não teriam de caminhar. O pai então lhe explicou a filosofia escandinava: “Nós, que chegamos muito antes, deixamos as vagas mais próximas a quem, por algum motivo, tenha se atrasado. Quando chegarem encontrarão livres as vagas mais próximas. E eles sabem disso. Hoje vai acontecer com um outro, mas amanhã pode ser comigo e eu ficarei grato a quem fizer assim”.

Essa mentalidade explica também o que vi num brilhante programa jornalístico televisivo semanal chamado Report, veiculado pela Rai 3. O assunto de duas semanas atrás foi o que me motivou a escrever essas linhas: os carros e a ligação que têm com dois temas urgentes da atualidade (energia e urbanismo). Partindo do problema energético, da saturação do mercado europeu do automóvel e da caótica situação urbana no que diz respeito à mobilidade, a reportagem foi até Malmöe (uma cidade universitária de grande porte bem em frente à capital da Dinamarca) e a Hamburgo. Ali, as políticas públicas de transporte (privado e coletivo) são tão bem executadas que, mesmo sob o frio escandinavo, as pessoas se sentem satisfeitas em dividir automóveis alugados, montar esquemas de caronas, utilizar ônibus, construir estacionamentos coletivos como garagem e, principalmente, usar a bicicleta para se locomover.

Então me lembrei de um medievalista francês que tenho lido nos últimos meses. Michel Pastoureau diz que “tudo é cultural” em matéria humana. Evidentemente não quer dizer que absolutamente tudo é cultural, mas se se exclui a idéia de biológico e físico, o que resta é a dimensão psicológica, antropológica, sociológica e etnológica — e isso é cultural. Me veio à mente porque, nessa relação nossa com o automóvel, entre as visões escandinava e americana, por exemplo, existe uma distância que deveria ser medida em anos-luz. Os valores americanos nos ensinam que é a propriedade de um veículo a conferir alguma distinção para as pessoas. Quanto melhor o veículo, melhor a distinção. Quanto mais veículos, mais distinção. De acordo com o uso que se faz desse veículo, se atribui um tipo mais nobre ou mais comum de distinção. A noção “escandinava”, me parece, introduz um conceito “maluco” nessa história toda: utilidade. O que importa é a locomoção, o transporte, e talvez por isso ninguém se chateie muito com a condição do carro que te leva de casa para o trabalho. Iniciando com a mentalidade referente ao objeto carro, podemos chegar mais facilmente à solução do problema maior que ele causa.

Obviamente não quero dizer que ninguém na Escandinávia ou na Baixa Saxônia se importa com a qualidade do seu automóvel, ou se é mais bonito ou menos “bacana”. Acho apenas — e isso salta aos olhos de quem vê — que são os valores muitas vezes a definir uma questão como essa. A nossa relação com o automóvel, à parte algum caso “freak” do norte da Europa e poucos outros pontos do globo, é filha daquela mentalidade doentia — sobretudo americana — de vaidade fútil, competição e de absoluto afastamento da noção de utilidade das coisas e das “condições de uso” dos recursos do planeta.

15 maio 2010

MAIS RÁPIDO, MAIS EFICIENTE

Todos os sábados é preciso se deslocar com cuidado entre as gôndolas. Uma visita ao templo do reabastecimento doméstico nesse dia exige a máxima atenção: de tão lotado, o perigo de golpear canelas ou abalroar pessoas e prateleiras é real e aterrorizador. Deve ser porque trata-se do maior supermercado dentro do perímetro central de Milão. Os preços são um detalhe: como sempre, é preciso ficar atento à misteriosa combinação de ofertas dos concorrentes. Então, da manhã mais tenra ao início da tarde dos sábados, religiosamente, centenas (milhares?, sim, milhares) de milaneses e imigrantes vários se acotovelam nos corredores e no grid dos caixas a fim de satisfazer sua existência plena de consumidores.

Normalmente, no contexto, as filas dos caixas são imensas, mas toleráveis. Naquilo que deveria ser o fim da aventura, os produtos ficam ali, se exibindo na esteira, catalogados mentalmente até chegar às mãos do funcionário que, ao som contínuo de bips, transforma tudo em cifras — e das quais, no fim do mês, receberá algumas migalhas pelo seu esforço de oito horas repetindo os mesmos três ou quatro movimentos.

Mas o sistema é sábio, mais sábio do que conceder migalhas (o Sistema, coitado, insiste em confundir falta de necessidade de qualificação com desqualificação). Na Itália não existe a figura prestativa do empacotador, normalmente exercida por um jovem bastante jovem, movido pela migalha que recebe todo fim de mês. Aqui não: o próprio cliente deve, da melhor maneira que for capaz, meter todas as suas aquisições do momento dentro das sacolas — no menor tempo possível, se faz a gentileza, porque, veja bem, a fila é longa. Evidentemente, conta com a ajuda do funcionário do caixa, solícito não se sabe se por paciência curta, orientação comercial ou educação. Nenhum problema, o consumidor já se adaptou à situação: é raro ver pessoas fazendo suas compras sozinhas — vêm em duplas, um paga enquanto o outro (ou ambos) agita (ou agitam) os braços, acomodando tudo nas sacolas (evidentemente pagas; a natureza agradece). Sistema perfeito, funciona até mesmo para os idosos, que fazem assim, talvez, o último exercício físico da fase final de suas vidas. O gado, quero dizer, o consumidor é participativo e hábil.

Mas é possível fazer o fluxo funcionar de forma ainda melhor. Por que não incentivar — pergunta-se o Sistema — uma maior participação do cliente (enquanto economizamos alguns trocados para o nosso lucro)? Além disso, sem a lerdeza de um atendente se economiza o tempo do consumidor, que pode aproveitar o seu sábado para um passeio com a família, uma refeição especial, uma pequena viagem ou um sonolento dia em frente à tv. Promissor. Surgem então os caixas automáticos, que vendem rapidez. Ninguém liga muito se as filas dobram de tamanho e o tempo triplica porque a maioria das pessoas não sabe usar o mecanismo — ou porque o mecanismo é, enfim, um mecanismo e por isso precisa da máxima colaboração humana para funcionar. Não parece ser uma questão de idade já que muitos jovens também se vêem enredados no complexo e sensível humor das máquinas: um momento de hesitação e toda a sabedoria do processo se bloca.

Eram 20, talvez mais, os caixas do grande supermercado. Todos humanos e falíveis. Agora os humanos foram reduzidos a cerca de 12 ou menos, substituídos por máquinas — eletrônicas e falíveis. Ironia é o fato de que, mesmo a figura do caixa humano desaparecendo, o ponto final das compras ainda é povoado por funcionários estressados: senhoras e jovens em jaleco laranja, tênis e olhar assustado, cuja função é correr de lá pra cá e de cá para lá “explicando” às pessoas como não magoar a máquina para que ela possa fazer o seu trabalho de forma mais rápida e eficiente que um ser humano. Também os jalecos laranja receberão suas migalhas no fim do mês. Já o Sistema... bem, o Sistema é o Sistema, e seria prova de estupidez tentar raciocinar algo externo ao sistema, que contém e detém tudo: as mercadorias, o tempo, o espaço, as almas, a riqueza. O Sistema é mais poderoso que nós, é onipresente e onipotente. É o Tudo. É Deus.

14 maio 2010

A RELAÇÃO ENTRE OS DETALHES

 A verdade é que não posso garantir que desta vez manterei um blog devidamente atualizado e repleto de “atrações”. Sobretudo porque não é que esteja exatamente numa fase profícua, positiva e mentalmente tranquila, daquelas em que mesmo se agarrando apenas a um rabisco de idéia se é capaz de produzir um texto minimamente interessante. Também influencia um certo pessimismo de que, como muitos gostam de propagandear (talvez refletindo o próprio temor), ninguém lerá o que for escrito e, se o fizer, o que foi escrito não fará nenhuma diferença (existem também aqueles que fazem questão de recordar que 99,97% das pessoas que escrevem coisas na internet não dispõem de uma “qualificação” para isso e, portanto, não significam nada). Pode ser que sim, pode ser que não. Fato é que tem sido cada vez mais difícil — e até metaforicamente doloroso — encontrar motivação para escrever e, inclusive, escrever. Mas escreverei, ora.

Talvez estejam certos os que menosprezam qualquer coisa que alguém tenha escrito ou dito, por exemplo, sobre economia (a crise, pacotes de ajuda, quebra disso, queda daquilo), senão escrito ou dito exclusivamente por um economista. Se têm razão (e, nesse caso, somente a aclamação do “público” pode conferir “razão” a quem tem essa opinião), ao menos para mim fica comprovada a dramaticidade de uma das maiores vitórias da modernidade: a crença de que o que qualquer pessoa “normal” tem a dizer não vale absolutamente nada se ela não for comprovadamente especializada — mesmo que diga algo coerente e interesante. No fim, acho eu, essa pretensa “especialização” é apenas um modo de afastar as pessoas da possibilidade de relacionar as coisas.

Normalmente jornalistas são feitos assim, carentes de pessoas com credenciais para as quais fazer alguma pergunta. Mas sou um apóstata nisso também e, por mais que eu seja da opinião de que o mundo transborda de imbecis, provavelmente como jamais a História humana testemunhou, não posso me sentir confortável com a lógica do “fale-somente-se-for-dar-alguma-informação-relevante”. Não que eu seja o maior fã de interações humanas, mas me parece que o problema está aqui: tudo deve ser objetivo ao extremo e nos desacostumamos a considerar um relato, uma descrição emotiva, uma história, um pensamento ou uma simples opinião como um potencial ninho de informações — subjetivas ou menos, que seja. Isso porque, é minha opinião, continuamos nos confundindo com a idéia de que exista a tal Verdade e que devemos correr nervosos atrás dela. E, afinal, o que é relevante?

Eu falo como jornalista sim, mas apenas enquanto alguém que não é médico, jurista, engenheiro ou qualquer outra coisa “específica”. Nem sequer me enquadro naquele cada vez mais numeroso grupo de pessoas que se retiram do exercício de pensar por si próprias. Falo mais como uma pessoa à margem — não exatamente da sociedade, que não cheguei a esse ponto ainda, mas de uma série de coisas que tentam padronizar nossa maneira de ver o mundo. E padronizar é impedir o exercício de fazer relações. Achar que existe uma única Verdade, imortal e inconfutável, por exemplo, é se render a uma simplificação. Obviamente eu acho que existe certo e errado, belo e feio, mas essa noção tem limite. O que escreverei aqui fica dentro deste limite. Será apenas a minha opinião — muitas vezes embasada, outras nem tanto — acrescida, dentro das minhas condições, de informação (que foi para isso que eu estudei).

Não consigo deixar de lado a convicção de que ninguém pode ter muita certeza sobre muita coisa (acho que a figura do velho sábio sobre a montanha já não tem sentido), o que não invalida uma visão embasada nessa aleatoriedade toda. Maria Montessori, pedagoga e filósofa italiana, dizia que entender os detalhes gera a confusão, mas entender a relação entre os detalhes gera sabedoria. O Apóstata, em síntese, é apenas isso: uma humilde manifestação de como vejo a aleatoriedade (a aparente e a de fato) guiar a maior parte da História, e (importantíssimo!) de como todo o resto é uma simples questão de informação — e sobretudo da falta dela —, que permite juntar os detalhes que, por natureza, são confusos e dispersos. Ter muitas certezas, penso eu e mais um monte de gente, é um luxo dos ignorantes.