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27 julho 2010

O VERÃO E O FUTEBOL

Se depreende, no geral, que minha opinião sobre a bella stagione, como equivocadamente chamam aqui, é muito próxima da pior possível. Há um outro fator, além do climático, que reforça essa idéia negativa que tenho do verão, especialmente aqui na Itália: o grande vácuo de futebol que a época representa. Não que a oferta de jogos que se dispõe no Brasil melhore muito as coisas. Sempre achei tremendamente melancólico aqueles jogos do Gauchão entre o final de janeiro e o início de março — e se poderia pressupor corretamente que acho melancólico o próprio campeonato —, aquelas partidas com um quê de irreal em tardes horrendamente tórridas pelo interior gaúcho. Não deploro o Gauchão, nada disso. Penso apenas que, assim como é, não tem mais razão de ser e que o fato de estar comprimido entre janeiro e abril torna as coisas muito mais caricatas do que já são (saudades dos jogos em Bento Gonçalves com os times em manga comprida...). Mas isso é outro assunto. No Brasil, enfim, para o bem ou para o mal, temos os regionais e a Copa do Brasil preenchendo os pacatos meses de janeiro e fevereiro (que se jogue no calor desumano de 40ºC é um detalhe para alguns). O fato é que nossa “existência futebolística” — da qual, como todas as paixões, não se pode abrir mão — fica ao menos entretida com jogos pretensamente importantes.

Aqui não, e isso não chega a ser uma crítica. O calendário é bem organizado — ao menos o italiano; o discurso teria de ser outro se falássemos da Inglaterra e suas trocentas copas nacionais — e religiosamente na metade de maio todos os clubes encerram suas atividades para que seus jogadores rolem nas areias da beira-mar mundo afora. Exceção feita a períodos especiais, como ano de Copa do Mundo, o assunto futebol entra numa longa distensão e chega a hora da imprensa esportiva européia usar a imaginação e os diagramadores recorrerem a fotos de página inteira. Grosso modo, entre o final de maio e meados de agosto abre-se um buraco negro pelo qual o futebol (o de campo, a sério, à parte obscuros amistosos e as intermináveis lenga-lengas das contratações) é sumariamente tragado. Alguns campeonatos, como a Serie B e C, tem suas fases decisivas no início de junho, mas isso normalmente não envolve grandes públicos (porque trata-se de clubes provincianos) e até mesmo a mídia perde a concentração.

Então pode-se considerar um homem (ou mulher) de sorte aquele fã de futebol que tem à disposição um verão inteiro de jogos arrastados e interrompidos para a hidratação dos atletas. Ao menos não são condenados a — falo por mim e por todos os inimigos do verão — mais um tormento. Pior que Grêmio x Avenida ou Inter x Universidade em Cidreira é aturar quase 90 dias de calor de estirpe norte-africana sem um único jogo decente para assistir.

04 junho 2010

GHEA PODÈMO FAR!

Já contei em outro espaço como menosprezei Veneza até conhecê-la. E lamento muito incorrer num clichê aristocrático, mas descobri, pisando lá pela primeira vez, que Veneza é daqueles lugares que, se for o caso, amamos como se a tivessemos antromorfizado e humanizado. Não é apenas o peculiaríssimo espaço físico que seduz, obviamente não. Nem poderia ser a nefasta movimentação de turistas embasbacados e, na maioria das vezes, idiotas, que são atraídos mais pelo glamour que pela história e pela beleza. Para quem se pergunta e fica atento à resposta, a cidade emana uma energia estranha, misteriosa na medida em que não se revela por completo, uma beleza estonteante e uma cultura (no sentido mais amplo possível) encantadora. Lamento muitíssimo o pecado da pieguice, mas preciso dizer que coloquei Veneza no pedestal das paixões, das minhas paixões, e agora a chamo de minha cidade.

Unir duas paixões normalmente resulta em algo interessante. Já que todo lugar novo que conheço carrega aquele tal “potencial futebolístico” intrínseco — mesmo que seja um humilde clube que milita em divisões subterrâneas —, me pus a revirar a história do único clube de futebol de Veneza. O simples fato da cidade contar com um clube de futebol é já, por si só, um motivo de admiração. A trajetória de 103 anos do representante lagunar no calcio é repleta de peculiaridades, altos e muitos baixos, que em breve contarei num texto específico sobre a história do Venezia, se interessar a alguém (a mim, ao menos).

Por um desses estranhos encantos do futebol, adotei o clube lagunar como “do coração” (tenho esse insano costume de me afeiçoar a clubes de futebol dos quais conheço apenas o nome, o logotipo e o uniforme). Só Deus sabe exatamente o porquê, além do óbvio, ser de Veneza: as cores são uma lamentável combinação de preto, verde e laranja (o que, porém, tem uma explicação pontual), passou quase 70 dos seus 100 anos se debatendo entre as séries B e C, quebrou três vezes, mudou de nome e de escudo outras tantas e hoje amarga uma “humilhante” temporada (que se repetirá em 2010-2011) na quinta divisão italiana. Tem um único título decente, a Copa Itália de 1940-41 — uma temporada que, se sabe, apenas na Itália se conseguia jogar futebol.

Nunca tive aquele “orgulho bicho-grilo” dos admiradores do futebol riponga e kitch, como o bravíssimo e inspirador pessoal do Impedimento. O que também não quer dizer que fosse um deslumbrado devorador do marketing europeu. É muito justo orgulhar-se da simplicidade (o futebol incluído), mas nunca consegui olhar para Lajeadense x Cruzeiro-Poa com os mesmos olhos de Grêmio x Palmeiras ou Manchester Utd x Juventus — mesmo que, como todo maluco por futebol, olhasse qualquer jogo, inclusive XV de Jaú x Ferroviária de Araraquara nos tempos em que a Band tinha uma programação “de raiz”. Por um longo e lento processo que passa por captar o âmago da coisa (que é basicamente, o futebol como prazer de jogar e de assistir) e culmina com o Venezia, agora me vejo esbravejando por causa das parcas informações que se consegue arrancar sobre as divisões inferiores de qualquer ponto do planeta, mesmo com a internet. Não saber como foi Venezia x Union Quinto pelos playoffs da Serie D italiana (5ª divisão) significa uma tensão difusa e uma dor etérea na boca do estômago.

John Foot, na sua magnífica obra sobre a história do calcio, elogiou com palavras agudas um livro escrito por dois historiadores e torcedores do Venezia: “o livro sobre futebol mais interessante publicado na Itália nos últimos tempos e, talvez exatamente por isso, completamente ignorado”. Chama-se Cartas da curva sul (Lettere dalla curva sud, no original), de Filippo Benfante e Piero Brunello — esse último, por sinal, professor na universidade de Veneza, estudou e publicou a história dos imigrantes italianos no sul do Brasil. Os italianos se referem à zona atrás dos gols como curva e está para nós também como a nossa “geral”, num sentido sociológico. O livro é, basicamente, o relato e o estudo da experiência de assistir às partidas do Venezia analisando toda a dimensão social, cultural, histórica e por aí vai. Esse texto todo é só para dizer o quão feliz fiquei em colocar, finalmente, as mãos nesse livro. Que, assim que terminar Gomorra, devorarei, de preferência antes da Copa começar — e que sem dúvida originará um texto realmente interessante.

P.S.: como relatado no livro, no estádio Pierluigi Penzo como de resto em toda Veneza e região, a linguamadre é o “dialeto” vêneto, e não o italiano. “Ghea podèmo far!” é uma espécie de “yes, we can” — como se pode intuir.

20 maio 2010

O "COMUNICADOR"

No último domingo a Internazionale se sagrou campeã italiana (quinto scudetto consecutivo) e se vencer a Liga dos Campeões no próximo sábado, em Madri, contra o Bayern, José Mourinho deixa o futebol italiano. Deve levar sua rabugice e soberba para a capital da Espanha. É o que eu penso como jornalista e amante de futebol e seria capaz de apostar, digamos, 12 decadentes euros nisso. Também acho que, caso o clube de Milão perca essa final, o português vai embora da mesma forma. Meu palpite se apóia numa única verdade: Mourinho odeia a Itália — e, às vezes, parece odiar tudo que se mova ou respire.

Mourinho — digo isso de forma respeitosa e estudada — é um quase perfeito idiota. Não por odiar a Itália, que isso cada um é livre de fazer, mas por pensar que o futebol é mais um daqueles setores da vida humana (o enésimo) em que para ascender é preciso pisar no outro, rebaixá-lo, demonizá-lo, ridicularizá-lo, sobrepujá-lo, que se não o fizer antes alguém o fará mais cedo ou mais tarde e agir em função dessa preocupação. Natural que seja o pensamento dominante, na medida em que o mundo (salvo exceções honrosas) é uma grande porcaria exatamente porque esse pensamento é dominante. Mas o futebol é um jogo, fatalmente haverá vencedores e vencidos e se Mourinho não fosse praticamente um problema moral ambulante confiaria na sua imensa capacidade e qualidade e nos pouparia de um veneno que é muito comum em vários campos da existência, mas que no futebol não é assim tão frequente.

Não me entendam errado: não me julgo o defensor da moralidade e não estou querendo fazer de Mourinho um crápula absoluto. Acho apenas que ele sintetiza uma idéia. Uma idéia errada, pouco nobre (para dizer o mínimo), por mais que seja — e é — um fantástico técnico de futebol. Essa idéia, penso, quando aplicada ao mundo do business, ou na selva tropical, pode ser que dê muitos bons resultados, mas quando colocada no miolo do futebol acaba por turbá-lo.

Na Itália, o português se deu ao luxo de fazer coisas que não se permitia na Inglaterra, e isso diz muito sobre ele próprio e sobre os dois países, com aspectos positivos e negativos. A visão que se tem de Mourinho aqui é bastante complexa, mas poderia ser resumida em três noções básicas, às vezes intercruzadas numa mesma pessoa. 1) A veneração cega que “camufla” um comportamento duvidoso sob um manto de “polêmica” (“Mourinho é um grande comunicador”, é a frase favorita dessa facção). Para algumas pessoas, o técnico da Inter é um acréscimo ao futebol italiano porque vence e “tempera”, e ponto final. 2) Uma admiração distanciada, considerando que para o futebol vale a regra da concorrência “vença ou fique para trás”. Mourinho é um mal necessário. 3) Reprovação moral. Para Sandro Mazzola, ícone do calcio, por exemplo, fica difícil reconhecer o valor do esporte no comportamento do português. A melhor coisa a fazer então é uma distinção claríssima entre a pessoa e o profissional.

Talvez seja ranço de um velho que jogou “nos tempos do upa!” — e que tende por isso a interpretar o futebol moderno através de uma tecla SAP —, mas Mazzola foi um dos poucos a afrontar Mourinho nesses dois anos em que o português vive na Itália. Um dia, criticou o técnico da Inter por uma escolha tática. E voltou a fazê-lo depois que Mourinho deu o ar da graça, sendo agressivo e arrogante. O português perguntou em tom provocatório: “Mazzola por acaso é meu chefe?”. O velho jogador, que agora é um competente comentarista da Rai, devolveu: “Sou acionista da Inter. Sou sim. Também”. Mourinho não nos forneceu uma resposta. Raro.

Tudo bem que vença, que seja um dos profissionais mais bem pagos do planeta — é competente, estudioso, tem qualidade e é fiel ao seu grupo e aos seus em geral. Mas Mourinho, como disse, sintetiza um sentimento ruim para o futebol e para se exibir por aí. No início achei que poderia ser pieguice minha, depois percebi que mais gente via a questão assim. Não poucos. Talvez a chave da explicação seja a que sugeriu Jaime Pacheco, que inclusive e ao menos merece alguma consideração por ter feito do Boavista campeão português em 2001. Acho que ele tem razão.

 Foto: AFP