Já contei em outro espaço
como menosprezei Veneza até conhecê-la. E lamento muito incorrer num clichê aristocrático, mas descobri, pisando lá pela primeira vez, que Veneza é daqueles lugares que, se for o caso, amamos como se a tivessemos antromorfizado e humanizado. Não é apenas o peculiaríssimo espaço físico que seduz, obviamente não. Nem poderia ser a nefasta movimentação de turistas embasbacados e, na maioria das vezes, idiotas, que são atraídos mais pelo
glamour que pela história e pela beleza. Para quem se pergunta e fica atento à resposta, a cidade emana uma energia estranha, misteriosa na medida em que não se revela por completo, uma beleza estonteante e uma cultura (no sentido mais amplo possível) encantadora. Lamento muitíssimo o pecado da pieguice, mas preciso dizer que coloquei Veneza no pedestal das paixões, das minhas paixões, e agora a chamo de
minha cidade.
Unir duas paixões normalmente resulta em algo interessante. Já que todo lugar novo que conheço carrega aquele tal “potencial futebolístico” intrínseco — mesmo que seja um humilde clube que milita em divisões subterrâneas —, me pus a revirar a história do
único clube de futebol de Veneza. O simples fato da cidade contar com um clube de futebol é já, por si só, um motivo de admiração. A trajetória de 103 anos do representante lagunar no
calcio é repleta de peculiaridades, altos e muitos baixos, que em breve contarei num texto específico sobre a história do Venezia, se interessar a alguém (a mim, ao menos).
Por um desses estranhos encantos do futebol, adotei o clube lagunar como “do coração” (tenho esse insano costume de me afeiçoar a clubes de futebol dos quais conheço apenas o nome, o logotipo e o uniforme). Só Deus sabe exatamente o porquê, além do óbvio, ser de Veneza: as cores são uma lamentável combinação de preto, verde e laranja (o que, porém, tem uma explicação pontual), passou quase 70 dos seus 100 anos se debatendo entre as séries B e C, quebrou três vezes, mudou de nome e de escudo outras tantas e hoje amarga uma “humilhante” temporada (que se repetirá em 2010-2011) na quinta divisão italiana. Tem um único título decente, a Copa Itália de 1940-41 — uma temporada que, se sabe, apenas na Itália se conseguia jogar futebol.
Nunca tive aquele “orgulho bicho-grilo” dos admiradores do futebol riponga e
kitch, como o bravíssimo e inspirador pessoal do
Impedimento. O que também não quer dizer que fosse um deslumbrado devorador do marketing europeu. É muito justo orgulhar-se da simplicidade (o futebol incluído), mas nunca consegui olhar para Lajeadense x Cruzeiro-Poa com os mesmos olhos de Grêmio x Palmeiras ou Manchester Utd x Juventus — mesmo que, como todo maluco por futebol, olhasse qualquer jogo, inclusive XV de Jaú x Ferroviária de Araraquara nos tempos em que a Band tinha uma programação “de raiz”. Por um longo e lento processo que passa por captar o âmago da coisa (que é basicamente, o futebol como prazer de jogar e de assistir) e culmina com o Venezia, agora me vejo esbravejando por causa das parcas informações que se consegue arrancar sobre as divisões inferiores de qualquer ponto do planeta, mesmo com a internet. Não saber como foi Venezia x Union Quinto pelos
playoffs da Serie D italiana (5ª divisão) significa uma tensão difusa e uma dor etérea na boca do estômago.
John Foot, na sua magnífica
obra sobre a história do calcio, elogiou com palavras agudas um livro escrito por dois historiadores e torcedores do Venezia: “o livro sobre futebol mais interessante publicado na Itália nos últimos tempos e, talvez exatamente por isso, completamente ignorado”. Chama-se
Cartas da curva sul (
Lettere dalla curva sud, no original), de Filippo Benfante e Piero Brunello — esse último, por sinal, professor na universidade de Veneza, estudou e publicou a história dos imigrantes italianos no sul do Brasil. Os italianos se referem à zona atrás dos gols como
curva e está para nós também como a nossa “geral”, num sentido sociológico. O livro é, basicamente, o relato e o estudo da experiência de assistir às partidas do Venezia analisando toda a dimensão social, cultural, histórica e por aí vai. Esse texto todo é só para dizer o quão feliz fiquei em colocar, finalmente, as mãos nesse livro. Que, assim que terminar
Gomorra, devorarei, de preferência antes da Copa começar — e que sem dúvida originará um texto realmente interessante.
P.S.:
como relatado no livro, no estádio Pierluigi Penzo como de resto em toda Veneza e região, a linguamadre
é o “dialeto” vêneto, e não o italiano. “Ghea podèmo far!”
é uma espécie de “yes, we can”
— como se pode intuir.