Encontrei dia desses um dos fragmentos que vão compôr o mosaico da resposta. Nada muito transcendental, mas acho que representa um bom ponto de partida — ou de chegada, não sei bem. Havia me planejado para sair para correr, percorrer algumas quadras, tocar o Arco da Paz do Parco Sempione e voltar para casa. Troquei de estratégia em cima da hora, desencorajado pelo ar quente da noite de quase verão. Peguei a bicicleta e saí pela cidade, sem rumo específico, apenas ziguezagueando em zonas que mapeei mentalmente, áreas já visitadas mas sobretudo as não exploradas. Uma deriva sobre duas rodas.
Fui arrastado para dentro de alguns quartieri dos quais conhecia apenas as vias principais. Me deixei atrair por ruas tranquilas, iluminadas de maneira harmoniosa, com fachos de luz de um tom caramelo a intervalos regulares. Nas profundezas dos bairros havia muito pouca gente na rua. Aqui e ali a calçada era ocupada por mesas e cadeiras de bares, sempre lotados. Mas, no geral, ninguém. Quase não havia tráfego: aqui se anda de bicicleta na própria via e era como se fossem feitas, àquela hora, para as bicicletas e não para os carros.
Empregava uma velocidade constante, minha primeira motivação era fazer exercício. Tive que alterar esse comportamento, diminuir a marcha para depois acelerar, olhar em volta, tirar uma das mãos do guidom, girar os pedais para trás enquanto mergulhava numa descida, erguer todo o corpo sobre os pés, sentir o vento no rosto. A cidade pedia que desse atenção a seus prédios, suas luzes, suas pessoas, seus vazios. Milão é bela e agradável e a máxima consciência que se pode ter disso, acho eu, é andar de bicicleta sem rumo, numa noite amena.
A parte da resposta sobre as qualidades que existem aqui e somente aqui é simbolizada no ato simplíssimo de deslizar sobre duas rodas por uma cidade bonita sem ser importunado por ninguém e de forma que se possa apreciar cada esquina, cada vista. É preciso mais que beleza urbana para tornar possível um despreocupado passeio ciclístico à noite. O mundo precisa — ao menos no contexto mais imediato e próximo — estar disposto de uma tal maneira que não se torne um exercício de risco, de extrema necessidade ou de ociosidade malévola. Mas que seja apenas um momento em que é possível esquecer que a vida é dura. Um momento de paz.
2 comentários:
Nas entrelinhas está escrito que há, ao menos, plano próximo de uma visita?
A parte as romantizações e idealizações, a diferença, talvez única existente, entre aqui e ai seja exatamente essa. Nem em Garibaldi se pode mais andar de bicicleta à noite.
No resto, ainda dentro desta idealização dos em desenvolvimento, tudo que há ai, há aqui, com uma delay, às vezes grande, às vezes pequeno, e a preços maiores.
Não é ai que é mais seguro, como se fosse um mundo ideal. Aqui que a vaca foi para o brejo há muito tempo, de um modo quase que irreversível a médio prazo.
Caríssimo, concordo que não é que aqui seja mais seguro. O problema é aí, e não o mérito aqui. Mas não consigo dizer que tudo que há aqui há aí também, mesmo considerando o delay e preços... Não acho que vivamos na tal aldeia global, mesmo que estejamos todos naquele tão propagandeado Ocidente. O contexto faz as coisas, acho eu, e cada contexto faz coisas diferentes. Entendi o que tu queres dizer, no entanto o alcance do que eu queria dar a entender é o maior possível: da maneira que as pessoas caminham e falam ao modo no qual reagem a uma ofensa. Enfim.
Planos a gente sempre tem. Mas não sei te dizer se essa ida ao Brasil será triste e definitiva ou alegre e passageira. Em breve, de qualquer forma, estaremos aí. Jantinhas básicas, portanto. Grande abraço.
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