Assisti novamente a V for Vendetta [V de Vingança] e começava a preparar um texto. Então reli uma bela entrevista (que já havia sugerido há três anos em Cantofabule, parte 1 e parte 2) com Alan Moore, o criador da história original, e me dei conta de que o máximo que poderia fazer seria analisar o filme enquanto tal — e minha idéia estava longe de ser essa. Meu intento era dar relevo à densidade da história e das idéias contidas nela, que ultrapassam em anos-luz, na minha opinião, a forma como a trama é contada. Acontece que Moore esbraveja nessa entrevista contra a adaptação para o cinema, entre outros motivos muito mais mundanos, exatamente porque alteraria a maneira como é narrada, deformando o sentido da história. Então cancelei o projeto do texto — que será realizado mais tarde, abordando a versão original, para publicação em Herodotos Report — e me bati atrás dos quadrinhos, que foi por ali que V for Vendetta veio ao mundo, pensada com carinho para isso. Me dei ao trabalho de me exigir a versão original, em inglês, temendo que me escapasse qualquer coisa. Porque V for Vendetta me marcou profundamente, e torço muito para que a bronca de Moore com a versão cinematográfica, que foi por onde conheci a história, seja “apenas” um ranço artístico e pessoal. Ele admite que não viu o filme: sua indignação existe por razões, até onde se sabe, de (des)entendimento com os detentores dos direitos já que, coisa muito básica, simplesmente era contra uma adaptação cinematográfica de sua obra. O fato é que logo nas primeiras páginas de V se percebe a mudança de tom e significado de muitos elementos; e assim, como aprecio a criatividade e o talento autoral, não escrevo uma única linha novamente sobre a história até conhecê-la em seu estado natural e original. V for Vendetta tem uma idéia bastante densa por trás, o que suponho esteja seriamente em risco ao ser jogada para cá e para lá e “adaptada” em novos formatos.
O que não poderia deixar de apontar são os pequenos textos introdutórios à versão original da HQ — são assinados pelo ilustrador David Lloyd e, obviamente, pelo próprio Moore e por sorte mantidos em todas as reedições e inclusive na versão brasileira. Acho que significam muito — além de representarem uma ironia quanto ao fato de que me preparo para, talvez, me mudar para a Inglaterra — e por isso os reproduzo abaixo.
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Minha filha caçula, Amber, tinha poucos meses de idade. Só fui terminar o roteiro ao fim do inverno de 1988, após um hiato de quase cinco anos desde o cancelamento da revista Warrior. Amber agora tem sete anos. Sei lá por que mencionei isso. É apenas um daqueles fatos nada relevantes que brotam, de repente, em nossa cabeça com força inesperada, levando-nos a meditar.
Juntamente com Marvelman (Miracleman nos EUA), V de Vingança representa minha primeira tentativa de produzir uma série em continuação. Minha carreira estava apenas se iniciando. Por essa e outras razões, nos primeiros episódios, certas partes soam estranhas quando avaliadas à luz do desenvolvimento posterior da série. Espero, no entanto, que você tolere qualquer deslize e concorde que foi melhor apresentar os primeiros episódios sem alterações em vez de erradicar todos os traços de imaturidade criativa.
Há também certa inexperiência política de minha parte, muito evidente nos capítulos mais antigos. Em 1981, o termo “inverno nuclear” ainda não havia se tornado corriqueiro e, embora meu palpite sobre as catástrofes climáticas chegasse bastante perto da realidade, a trama ainda assim sugere que uma guerra nuclear poderia deixar sobreviventes. Pelo que sei hoje, não é o caso.
Também se evidencia uma dose de ingenuidade na nossa suposição de que seria necessário algo tão dramático quanto um conflito nuclear para lançar a Inglaterra no fascismo. Se bem que, fazendo justiça a mim e a David, os quadrinhos daquela época não traziam previsões melhores ou mais precisas sobre o futuro de nosso país. O simples fato de que boa parte do cenário histórico advém de uma suposta derrota dos Conservadores nas eleições gerais de 1982 deve dar uma idéia de como estávamos estagnados e éramos ineptos em nosso papel de Cassandras.
Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está iniciando seu terceiro mandato e fala confiante de uma liderança ininterrupta dos Conservadores no próximo século. Minha filha caçula tem sete anos, e um jornal tablóide acalenta a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados das tropas de choque usam visores negros, bem como seus cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade até mesmo como conceito abstrato. Só posso especular sobre qual minoria será o alvo dos próximos ataques. Estou pensando em deixar o país com minha família em breve. Esta terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não gosto mais daqui!
Boa noite, Inglaterra. Boa noite BBC local e V de Vitória.
Olá, Voz do Destino e V de Vingança.
Alan Moore
Northampton, março de 1988
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Algumas noites atrás, eu entrei num pub a caminho de casa e pedi uma Guinness.
Não olhei no relógio, mas sei que ainda não eram oito horas. Era uma quinta-feira e eu podia ouvir a televisão ao fundo, passando o mais recente episódio de EastEnders — um seriado sobre o dia-a-dia de trabalhadores alegres e descontraídos em um bairro mítico e decadente de Londres.
Sentei-me a uma mesa e peguei um exemplar de um jornal gratuito que alguém havia largado por lá. Era uma edição que eu já havia lido. Não trazia muitas novidades. Pus o jornal de lado e resolvi sentar ao balcão.
A noite não estava movimentada. Dava para ouvir o murmúrio distante da TV em meio ao burburinho das pessoas no balcão e ao estalar das bolas de bilhar.
Depois de EastEnders, veio Porridge — a reprise de uma sitcom de um prisioneiro alegre e descontraído numa prisão vitoriana decadente, e por conviniência, nada opressiva.
Quase imperceptivelmente, escorria bebida dos dosadores de garrafas tombadas atrás do balcão. Gotas de uísque e vodka se formava e caíam sem alarde diante dos meus olhos.
Terminei o copo. Ergui a cabeça e o barman notou meu movimento. “Guiness?”, indagou ele, já alcançando outro copo limpo. Confirmei com a cabeça.
A mulher do barman chegou e pôs-se a ajudá-lo no atendimento aos clientes que entravam e saiam.
Às 8:30, após Porridge, veio A Question of Sport — um show de perguntas estrelando celebridades esportivas alegres e descontraídas, respondendo sobre outras celebridades esportivas, muitas das quais também alegres e descontraídas.
Reinou o bom humor.
“Vou avisar ao barman sobre os dosadores vasando”, pensei.
O Noticiário das Nove entrou logo depois de A Question of Sport... ou, pelo menos, 30 segundos antes da televisão ser desligada e ceder lugar a música pop alegre e descontraída.
Olhei pro barman. “Só metade desta vez”, disse eu. Enquanto ele enchia o copo, indaguei-lhe solenemente porque havia desligado justo no noticiário. “Não reclame comigo. Foi a patroa”, respondeu num tom alegre e descontraído, enquanto o alvo de seu comentário labutava num canto do balcão.
Os dosadores vazantes deixaram de ter qualquer importância pra mim.
Terminei minha cerveja e parti, quase certo de que a TV continuaria desligada o resto da noite. Afinal, depois do Noticiário das Nove, viria Os Meninos do Brasil, um filme com poucos personagens alegres e descontraídos, que trata de um bando de nazista criando 94 clones de Adolf Hitler.
Em V de VINGANÇA, também não há muitos personagens alegres e descontraídos; e é pra gente que não desliga na hora do noticiário.
David Lloyd
14 de janeiro de 1990
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Sentei-me a uma mesa e peguei um exemplar de um jornal gratuito que alguém havia largado por lá. Era uma edição que eu já havia lido. Não trazia muitas novidades. Pus o jornal de lado e resolvi sentar ao balcão.
A noite não estava movimentada. Dava para ouvir o murmúrio distante da TV em meio ao burburinho das pessoas no balcão e ao estalar das bolas de bilhar.
Depois de EastEnders, veio Porridge — a reprise de uma sitcom de um prisioneiro alegre e descontraído numa prisão vitoriana decadente, e por conviniência, nada opressiva.
Quase imperceptivelmente, escorria bebida dos dosadores de garrafas tombadas atrás do balcão. Gotas de uísque e vodka se formava e caíam sem alarde diante dos meus olhos.
Terminei o copo. Ergui a cabeça e o barman notou meu movimento. “Guiness?”, indagou ele, já alcançando outro copo limpo. Confirmei com a cabeça.
A mulher do barman chegou e pôs-se a ajudá-lo no atendimento aos clientes que entravam e saiam.
Às 8:30, após Porridge, veio A Question of Sport — um show de perguntas estrelando celebridades esportivas alegres e descontraídas, respondendo sobre outras celebridades esportivas, muitas das quais também alegres e descontraídas.
Reinou o bom humor.
“Vou avisar ao barman sobre os dosadores vasando”, pensei.
O Noticiário das Nove entrou logo depois de A Question of Sport... ou, pelo menos, 30 segundos antes da televisão ser desligada e ceder lugar a música pop alegre e descontraída.
Olhei pro barman. “Só metade desta vez”, disse eu. Enquanto ele enchia o copo, indaguei-lhe solenemente porque havia desligado justo no noticiário. “Não reclame comigo. Foi a patroa”, respondeu num tom alegre e descontraído, enquanto o alvo de seu comentário labutava num canto do balcão.
Os dosadores vazantes deixaram de ter qualquer importância pra mim.
Terminei minha cerveja e parti, quase certo de que a TV continuaria desligada o resto da noite. Afinal, depois do Noticiário das Nove, viria Os Meninos do Brasil, um filme com poucos personagens alegres e descontraídos, que trata de um bando de nazista criando 94 clones de Adolf Hitler.
Em V de VINGANÇA, também não há muitos personagens alegres e descontraídos; e é pra gente que não desliga na hora do noticiário.
David Lloyd
14 de janeiro de 1990
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Eu dei início a V de Vingança no verão de 1981, durante um feriado na Ilha de Wight, que dediquei inteiramente ao trabalho.
Minha filha caçula, Amber, tinha poucos meses de idade. Só fui terminar o roteiro ao fim do inverno de 1988, após um hiato de quase cinco anos desde o cancelamento da revista Warrior. Amber agora tem sete anos. Sei lá por que mencionei isso. É apenas um daqueles fatos nada relevantes que brotam, de repente, em nossa cabeça com força inesperada, levando-nos a meditar.
Juntamente com Marvelman (Miracleman nos EUA), V de Vingança representa minha primeira tentativa de produzir uma série em continuação. Minha carreira estava apenas se iniciando. Por essa e outras razões, nos primeiros episódios, certas partes soam estranhas quando avaliadas à luz do desenvolvimento posterior da série. Espero, no entanto, que você tolere qualquer deslize e concorde que foi melhor apresentar os primeiros episódios sem alterações em vez de erradicar todos os traços de imaturidade criativa.
Há também certa inexperiência política de minha parte, muito evidente nos capítulos mais antigos. Em 1981, o termo “inverno nuclear” ainda não havia se tornado corriqueiro e, embora meu palpite sobre as catástrofes climáticas chegasse bastante perto da realidade, a trama ainda assim sugere que uma guerra nuclear poderia deixar sobreviventes. Pelo que sei hoje, não é o caso.
Também se evidencia uma dose de ingenuidade na nossa suposição de que seria necessário algo tão dramático quanto um conflito nuclear para lançar a Inglaterra no fascismo. Se bem que, fazendo justiça a mim e a David, os quadrinhos daquela época não traziam previsões melhores ou mais precisas sobre o futuro de nosso país. O simples fato de que boa parte do cenário histórico advém de uma suposta derrota dos Conservadores nas eleições gerais de 1982 deve dar uma idéia de como estávamos estagnados e éramos ineptos em nosso papel de Cassandras.
Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está iniciando seu terceiro mandato e fala confiante de uma liderança ininterrupta dos Conservadores no próximo século. Minha filha caçula tem sete anos, e um jornal tablóide acalenta a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados das tropas de choque usam visores negros, bem como seus cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade até mesmo como conceito abstrato. Só posso especular sobre qual minoria será o alvo dos próximos ataques. Estou pensando em deixar o país com minha família em breve. Esta terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não gosto mais daqui!
Boa noite, Inglaterra. Boa noite BBC local e V de Vitória.
Olá, Voz do Destino e V de Vingança.
Alan Moore
Northampton, março de 1988
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