Li num habilíssimo texto de Geneton Moraes Neto a seguinte frase — entre tantas que deveriam entrar numa coletânea de uma disciplina chamada Filosofia do Jornalismo:
Além de repórter que tira leite de pedra, Joel [Silveira, “o maior repórter brasileiro”, sobre o qual eu já havia escrito aqui] cultua o “prazer do texto”. O que ele escreve é uma mistura feliz de Jornalismo e Literatura. Por que não?
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20 agosto 2010
POR QUE NÃO? 15:06
25 julho 2010
HORA DO NOTICIÁRIO 16:00
Assisti novamente a V for Vendetta [V de Vingança] e começava a preparar um texto. Então reli uma bela entrevista (que já havia sugerido há três anos em Cantofabule, parte 1 e parte 2) com Alan Moore, o criador da história original, e me dei conta de que o máximo que poderia fazer seria analisar o filme enquanto tal — e minha idéia estava longe de ser essa. Meu intento era dar relevo à densidade da história e das idéias contidas nela, que ultrapassam em anos-luz, na minha opinião, a forma como a trama é contada. Acontece que Moore esbraveja nessa entrevista contra a adaptação para o cinema, entre outros motivos muito mais mundanos, exatamente porque alteraria a maneira como é narrada, deformando o sentido da história. Então cancelei o projeto do texto — que será realizado mais tarde, abordando a versão original, para publicação em Herodotos Report — e me bati atrás dos quadrinhos, que foi por ali que V for Vendetta veio ao mundo, pensada com carinho para isso. Me dei ao trabalho de me exigir a versão original, em inglês, temendo que me escapasse qualquer coisa. Porque V for Vendetta me marcou profundamente, e torço muito para que a bronca de Moore com a versão cinematográfica, que foi por onde conheci a história, seja “apenas” um ranço artístico e pessoal. Ele admite que não viu o filme: sua indignação existe por razões, até onde se sabe, de (des)entendimento com os detentores dos direitos já que, coisa muito básica, simplesmente era contra uma adaptação cinematográfica de sua obra. O fato é que logo nas primeiras páginas de V se percebe a mudança de tom e significado de muitos elementos; e assim, como aprecio a criatividade e o talento autoral, não escrevo uma única linha novamente sobre a história até conhecê-la em seu estado natural e original. V for Vendetta tem uma idéia bastante densa por trás, o que suponho esteja seriamente em risco ao ser jogada para cá e para lá e “adaptada” em novos formatos.
O que não poderia deixar de apontar são os pequenos textos introdutórios à versão original da HQ — são assinados pelo ilustrador David Lloyd e, obviamente, pelo próprio Moore e por sorte mantidos em todas as reedições e inclusive na versão brasileira. Acho que significam muito — além de representarem uma ironia quanto ao fato de que me preparo para, talvez, me mudar para a Inglaterra — e por isso os reproduzo abaixo.
_________________
Minha filha caçula, Amber, tinha poucos meses de idade. Só fui terminar o roteiro ao fim do inverno de 1988, após um hiato de quase cinco anos desde o cancelamento da revista Warrior. Amber agora tem sete anos. Sei lá por que mencionei isso. É apenas um daqueles fatos nada relevantes que brotam, de repente, em nossa cabeça com força inesperada, levando-nos a meditar.
Juntamente com Marvelman (Miracleman nos EUA), V de Vingança representa minha primeira tentativa de produzir uma série em continuação. Minha carreira estava apenas se iniciando. Por essa e outras razões, nos primeiros episódios, certas partes soam estranhas quando avaliadas à luz do desenvolvimento posterior da série. Espero, no entanto, que você tolere qualquer deslize e concorde que foi melhor apresentar os primeiros episódios sem alterações em vez de erradicar todos os traços de imaturidade criativa.
Há também certa inexperiência política de minha parte, muito evidente nos capítulos mais antigos. Em 1981, o termo “inverno nuclear” ainda não havia se tornado corriqueiro e, embora meu palpite sobre as catástrofes climáticas chegasse bastante perto da realidade, a trama ainda assim sugere que uma guerra nuclear poderia deixar sobreviventes. Pelo que sei hoje, não é o caso.
Também se evidencia uma dose de ingenuidade na nossa suposição de que seria necessário algo tão dramático quanto um conflito nuclear para lançar a Inglaterra no fascismo. Se bem que, fazendo justiça a mim e a David, os quadrinhos daquela época não traziam previsões melhores ou mais precisas sobre o futuro de nosso país. O simples fato de que boa parte do cenário histórico advém de uma suposta derrota dos Conservadores nas eleições gerais de 1982 deve dar uma idéia de como estávamos estagnados e éramos ineptos em nosso papel de Cassandras.
Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está iniciando seu terceiro mandato e fala confiante de uma liderança ininterrupta dos Conservadores no próximo século. Minha filha caçula tem sete anos, e um jornal tablóide acalenta a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados das tropas de choque usam visores negros, bem como seus cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade até mesmo como conceito abstrato. Só posso especular sobre qual minoria será o alvo dos próximos ataques. Estou pensando em deixar o país com minha família em breve. Esta terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não gosto mais daqui!
Boa noite, Inglaterra. Boa noite BBC local e V de Vitória.
Olá, Voz do Destino e V de Vingança.
Alan Moore
Northampton, março de 1988
_________________
Algumas noites atrás, eu entrei num pub a caminho de casa e pedi uma Guinness.
Não olhei no relógio, mas sei que ainda não eram oito horas. Era uma quinta-feira e eu podia ouvir a televisão ao fundo, passando o mais recente episódio de EastEnders — um seriado sobre o dia-a-dia de trabalhadores alegres e descontraídos em um bairro mítico e decadente de Londres.
Sentei-me a uma mesa e peguei um exemplar de um jornal gratuito que alguém havia largado por lá. Era uma edição que eu já havia lido. Não trazia muitas novidades. Pus o jornal de lado e resolvi sentar ao balcão.
A noite não estava movimentada. Dava para ouvir o murmúrio distante da TV em meio ao burburinho das pessoas no balcão e ao estalar das bolas de bilhar.
Depois de EastEnders, veio Porridge — a reprise de uma sitcom de um prisioneiro alegre e descontraído numa prisão vitoriana decadente, e por conviniência, nada opressiva.
Quase imperceptivelmente, escorria bebida dos dosadores de garrafas tombadas atrás do balcão. Gotas de uísque e vodka se formava e caíam sem alarde diante dos meus olhos.
Terminei o copo. Ergui a cabeça e o barman notou meu movimento. “Guiness?”, indagou ele, já alcançando outro copo limpo. Confirmei com a cabeça.
A mulher do barman chegou e pôs-se a ajudá-lo no atendimento aos clientes que entravam e saiam.
Às 8:30, após Porridge, veio A Question of Sport — um show de perguntas estrelando celebridades esportivas alegres e descontraídas, respondendo sobre outras celebridades esportivas, muitas das quais também alegres e descontraídas.
Reinou o bom humor.
“Vou avisar ao barman sobre os dosadores vasando”, pensei.
O Noticiário das Nove entrou logo depois de A Question of Sport... ou, pelo menos, 30 segundos antes da televisão ser desligada e ceder lugar a música pop alegre e descontraída.
Olhei pro barman. “Só metade desta vez”, disse eu. Enquanto ele enchia o copo, indaguei-lhe solenemente porque havia desligado justo no noticiário. “Não reclame comigo. Foi a patroa”, respondeu num tom alegre e descontraído, enquanto o alvo de seu comentário labutava num canto do balcão.
Os dosadores vazantes deixaram de ter qualquer importância pra mim.
Terminei minha cerveja e parti, quase certo de que a TV continuaria desligada o resto da noite. Afinal, depois do Noticiário das Nove, viria Os Meninos do Brasil, um filme com poucos personagens alegres e descontraídos, que trata de um bando de nazista criando 94 clones de Adolf Hitler.
Em V de VINGANÇA, também não há muitos personagens alegres e descontraídos; e é pra gente que não desliga na hora do noticiário.
David Lloyd
14 de janeiro de 1990
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Sentei-me a uma mesa e peguei um exemplar de um jornal gratuito que alguém havia largado por lá. Era uma edição que eu já havia lido. Não trazia muitas novidades. Pus o jornal de lado e resolvi sentar ao balcão.
A noite não estava movimentada. Dava para ouvir o murmúrio distante da TV em meio ao burburinho das pessoas no balcão e ao estalar das bolas de bilhar.
Depois de EastEnders, veio Porridge — a reprise de uma sitcom de um prisioneiro alegre e descontraído numa prisão vitoriana decadente, e por conviniência, nada opressiva.
Quase imperceptivelmente, escorria bebida dos dosadores de garrafas tombadas atrás do balcão. Gotas de uísque e vodka se formava e caíam sem alarde diante dos meus olhos.
Terminei o copo. Ergui a cabeça e o barman notou meu movimento. “Guiness?”, indagou ele, já alcançando outro copo limpo. Confirmei com a cabeça.
A mulher do barman chegou e pôs-se a ajudá-lo no atendimento aos clientes que entravam e saiam.
Às 8:30, após Porridge, veio A Question of Sport — um show de perguntas estrelando celebridades esportivas alegres e descontraídas, respondendo sobre outras celebridades esportivas, muitas das quais também alegres e descontraídas.
Reinou o bom humor.
“Vou avisar ao barman sobre os dosadores vasando”, pensei.
O Noticiário das Nove entrou logo depois de A Question of Sport... ou, pelo menos, 30 segundos antes da televisão ser desligada e ceder lugar a música pop alegre e descontraída.
Olhei pro barman. “Só metade desta vez”, disse eu. Enquanto ele enchia o copo, indaguei-lhe solenemente porque havia desligado justo no noticiário. “Não reclame comigo. Foi a patroa”, respondeu num tom alegre e descontraído, enquanto o alvo de seu comentário labutava num canto do balcão.
Os dosadores vazantes deixaram de ter qualquer importância pra mim.
Terminei minha cerveja e parti, quase certo de que a TV continuaria desligada o resto da noite. Afinal, depois do Noticiário das Nove, viria Os Meninos do Brasil, um filme com poucos personagens alegres e descontraídos, que trata de um bando de nazista criando 94 clones de Adolf Hitler.
Em V de VINGANÇA, também não há muitos personagens alegres e descontraídos; e é pra gente que não desliga na hora do noticiário.
David Lloyd
14 de janeiro de 1990
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Eu dei início a V de Vingança no verão de 1981, durante um feriado na Ilha de Wight, que dediquei inteiramente ao trabalho.
Minha filha caçula, Amber, tinha poucos meses de idade. Só fui terminar o roteiro ao fim do inverno de 1988, após um hiato de quase cinco anos desde o cancelamento da revista Warrior. Amber agora tem sete anos. Sei lá por que mencionei isso. É apenas um daqueles fatos nada relevantes que brotam, de repente, em nossa cabeça com força inesperada, levando-nos a meditar.
Juntamente com Marvelman (Miracleman nos EUA), V de Vingança representa minha primeira tentativa de produzir uma série em continuação. Minha carreira estava apenas se iniciando. Por essa e outras razões, nos primeiros episódios, certas partes soam estranhas quando avaliadas à luz do desenvolvimento posterior da série. Espero, no entanto, que você tolere qualquer deslize e concorde que foi melhor apresentar os primeiros episódios sem alterações em vez de erradicar todos os traços de imaturidade criativa.
Há também certa inexperiência política de minha parte, muito evidente nos capítulos mais antigos. Em 1981, o termo “inverno nuclear” ainda não havia se tornado corriqueiro e, embora meu palpite sobre as catástrofes climáticas chegasse bastante perto da realidade, a trama ainda assim sugere que uma guerra nuclear poderia deixar sobreviventes. Pelo que sei hoje, não é o caso.
Também se evidencia uma dose de ingenuidade na nossa suposição de que seria necessário algo tão dramático quanto um conflito nuclear para lançar a Inglaterra no fascismo. Se bem que, fazendo justiça a mim e a David, os quadrinhos daquela época não traziam previsões melhores ou mais precisas sobre o futuro de nosso país. O simples fato de que boa parte do cenário histórico advém de uma suposta derrota dos Conservadores nas eleições gerais de 1982 deve dar uma idéia de como estávamos estagnados e éramos ineptos em nosso papel de Cassandras.
Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está iniciando seu terceiro mandato e fala confiante de uma liderança ininterrupta dos Conservadores no próximo século. Minha filha caçula tem sete anos, e um jornal tablóide acalenta a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados das tropas de choque usam visores negros, bem como seus cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade até mesmo como conceito abstrato. Só posso especular sobre qual minoria será o alvo dos próximos ataques. Estou pensando em deixar o país com minha família em breve. Esta terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não gosto mais daqui!
Boa noite, Inglaterra. Boa noite BBC local e V de Vitória.
Olá, Voz do Destino e V de Vingança.
Alan Moore
Northampton, março de 1988
17 julho 2010
VINHOS, ELITISMO E COTNARI 18:44
Citar vinhos, falar por falar de tipos, safras e variedades faz um bom elitista, ouvi dizer. Na verdade, assim como aconteceu com a cor azul — que se viu completamente expropriada de seus significados para traduzir no sistema de códigos apenas uma ideologia de direita ou, na melhor das hipóteses, um situacionismo, o que por sinal me ofende —, gostar de conhecer vinhos arregimenta ascos de intensidade variada entre os não-adeptos. Talvez essa seja a enésima vitória daqueles que combatem a divisão de classes mas que para isso fazem questão de ver o mundo sempre dividido em classes, forçando a barra até enquadrar tudo num materialismo doentio (mesmo que eu seja da opinião de que luta de classe existe e é muito provavelmente a mãe de todos os problemas do mundo; o erro, a meu ver, está em resumir tudo a isso). Ver num apreciador normal de vinhos necessariamente um elitista ferrenho é como ver gigantes em moinhos de vento. De fato existe esse fenômeno do que chamei de expropriação do significado, mas isso acontece externamente à coisa em si, não por causa dela: não é o vinho — ou charutos, ou antiguidades, ou qualquer outra coisa “fina” — que faz um esnobe, mas sim o uso hermético que esse faz na esperança de lhe conferir distinção e poder simbólico. Coisas que Freud explica. Ou deveria.
A PROPÓSITO...
Conheci aqui na Itália um vinho que atiçou minha curiosidade por alguns anos. O Brasil, além de ser no todo um parco consumidor (com uma vergonhosa média de 7 a 15 litros por habitante ao ano), se satisfaz com o pouco de vinho de boa e média qualidade que produz. O resultado é que não é fácil encontrar variedades e marcas menos famosas no mercado “para gente comum”, ou seja, para não-ricos — mesmo que estejamos falando de países tradicionais na cultura vinífera. Transbordando de romenos como qualquer outra cidade italiana, Milão me presenteou com uma comunidade bastante ativa desses europeus simples mas culturamente riquíssimos. Encontrei na metade do caminho entre minha casa e a residência de amigos uma loja de produtos gastronômicos da Romênia onde reluziam na prateleira as minhas tão desejadas garrafas de Cotnari. Esse vinho, que leva o nome da pequena cidade no norte do país onde é produzido, me chamou a atenção quando ainda estava no Brasil por dois particulares. O primeiro é ser o rótulo internacionalmente mais representativo dos vinhos da Romênia, país que me desperta interesse e que só não faz parte do primeiro escalão vinífero do mundo porque é um país pobre — a Hungria, por exemplo, apesar de produzir menos e de seus vinhos serem de menor qualidade, desfruta de uma certa fama no mercado europeu, principalmente junto aos alemães. O segundo motivo de minha atração pelo Cotnari era a promessa de um vinho doce, mas perfeitamente equilibrado. Equivale a dizer que, mesmo com uma quantidade colossal de açúcar (cerca de 240 gramas por litro), não resulta em um vinho pesado ou enjoativo. Evidentemente precisa ser colocado no seu contexto, que, para dizer o mínimo, não é acompanhar um prato de massa ao molho ou carnes. Prometia notas de mel, e essa era a minha busca. Por mais que eu imaginasse um vinho bom, me surpreendi positivamente: o Cotnari (principalmente a variedade Tamaioasa Romaneasca, mas também a Grasa) é uma verdadeira delícia. Na minha (ainda longínqua) situação ideal, acompanha uma torta como sobremesa, todos os dias. Ou mesmo puro, depois do jantar.
A PROPÓSITO...

04 junho 2010
GHEA PODÈMO FAR! 18:34

Unir duas paixões normalmente resulta em algo interessante. Já que todo lugar novo que conheço carrega aquele tal “potencial futebolístico” intrínseco — mesmo que seja um humilde clube que milita em divisões subterrâneas —, me pus a revirar a história do único clube de futebol de Veneza. O simples fato da cidade contar com um clube de futebol é já, por si só, um motivo de admiração. A trajetória de 103 anos do representante lagunar no calcio é repleta de peculiaridades, altos e muitos baixos, que em breve contarei num texto específico sobre a história do Venezia, se interessar a alguém (a mim, ao menos).
Por um desses estranhos encantos do futebol, adotei o clube lagunar como “do coração” (tenho esse insano costume de me afeiçoar a clubes de futebol dos quais conheço apenas o nome, o logotipo e o uniforme). Só Deus sabe exatamente o porquê, além do óbvio, ser de Veneza: as cores são uma lamentável combinação de preto, verde e laranja (o que, porém, tem uma explicação pontual), passou quase 70 dos seus 100 anos se debatendo entre as séries B e C, quebrou três vezes, mudou de nome e de escudo outras tantas e hoje amarga uma “humilhante” temporada (que se repetirá em 2010-2011) na quinta divisão italiana. Tem um único título decente, a Copa Itália de 1940-41 — uma temporada que, se sabe, apenas na Itália se conseguia jogar futebol.
Nunca tive aquele “orgulho bicho-grilo” dos admiradores do futebol riponga e kitch, como o bravíssimo e inspirador pessoal do Impedimento. O que também não quer dizer que fosse um deslumbrado devorador do marketing europeu. É muito justo orgulhar-se da simplicidade (o futebol incluído), mas nunca consegui olhar para Lajeadense x Cruzeiro-Poa com os mesmos olhos de Grêmio x Palmeiras ou Manchester Utd x Juventus — mesmo que, como todo maluco por futebol, olhasse qualquer jogo, inclusive XV de Jaú x Ferroviária de Araraquara nos tempos em que a Band tinha uma programação “de raiz”. Por um longo e lento processo que passa por captar o âmago da coisa (que é basicamente, o futebol como prazer de jogar e de assistir) e culmina com o Venezia, agora me vejo esbravejando por causa das parcas informações que se consegue arrancar sobre as divisões inferiores de qualquer ponto do planeta, mesmo com a internet. Não saber como foi Venezia x Union Quinto pelos playoffs da Serie D italiana (5ª divisão) significa uma tensão difusa e uma dor etérea na boca do estômago.

P.S.: como relatado no livro, no estádio Pierluigi Penzo como de resto em toda Veneza e região, a linguamadre é o “dialeto” vêneto, e não o italiano. “Ghea podèmo far!” é uma espécie de “yes, we can” — como se pode intuir.
26 maio 2010
CRESCIMENTO E DECRESCIMENTO 22:50
"Enfim, observando-se atentamente, a riqueza tem um caráter bem mais patológico que a pobreza. A riqueza extrema constitui o flagelo principal da sociedade moderna. Em vez de aumentá-la ainda mais sob a alegação de remediar a pobreza, seria preciso atacá-la como uma doença perigosa mascarada pelo imaginário instituído do crescimento. Jean Baptiste Say enunciou a lei de que a felicidade é proporcional ao volume do consumo. Trata-se da impostura economicista e modernista por excelência. Durkheim já denunciava esse pressuposto utilitarista da felicidade como soma de prazeres ligados ao consumo egoísta. Para ele, tal felicidade não está longe de levar à anomia e ao suicídio. Majid Rahnema observa com pertinência:
A miséria moral dos ricos e poderosos – assunto-tabu na literatura especializada sobre a pobreza – curiosamente chamou mais a atenção dos romancistas, poetas e, é claro, dos próprios pobres que a dos sociólogos e economistas que a consideram fora de discussão. O estudo profundo das verdadeiras causas da miséria poderia, no entanto, mostrar que ela está exatamente no centro – se não for o centro – do assunto.
Ele continua:
A miséria moral dos abastados, “vestida” com seus mais belos ornamentos e, portanto, bem menos visível do exterior, é paradoxalmente mais perniciosa do que aquela que afeta os indigentes: à obsessão propriamente patológica do mais-ter, ao desejo incessante de acumular para si e de retirar dos outros pelo simples prazer de exercer sobre eles um poder acrescentam-se fatores externos, tais como os muitos critérios de êxito social, a impiedosa dinâmica da competição, a regra de ouro do lucro a qualquer preço ou a mercantilização de todas as relações humanas.
É a miséria psíquica e espiritual dos saciados que produz no outro extremo da cadeia a miséria material dos excluídos, pois, numa sociedade que pensa que a vida é um combate e a morte, um fracasso, o remédio para a depressão psíquica é a excitação cujo exemplo é fornecido pela especulação da bolsa de valores. Essa dupla miséria é exacerbada pela publicidade, que é um meio de deixá-lo descontente com o que temos para fazer com que desejemos aquilo que não temos."
Excerto de O DECRESCIMENTO COMO CONDIÇÃO DE UMA SOCIEDADE CONVIVIAL
de Serge Latouche, professor emérito da Université Paris-Sud 11
25 maio 2010
DIVIDE ET IMPERA 13:12
Os romanos já sacavam da coisa. Mais de um milênio depois, Maquiavel repetiu a noção com outras palavras e desde então se faz referência e reverência à sua sabedoria, bem como a quem se apóia nela. Muito justo, não fosse o fato de que, se tivéssemos aprendido algo e crescido como seres humanos, talvez não precisássemos adentrar os anos 2000 com a mesma filosofia.
De qualquer forma, aqui estão 10 preceitos básicos de como exercer um poder em nossos dias. Exercer aqui tem o sentido de manter um poder (ou vários concomitantemente), não necessariamente o poder. Me refiro em especial ao mais sofisticado poder de nosso tempo, que é o controle social, mas penso que tenha validade em vários outros campos. É caso de ideologia, mas na sua forma mais básica e menos visível possível, ao mesmo tempo em que essa ideologia colabora para fazer desse poder o mais ilimitado que se tenha conhecido até agora. Alguns dos 10 pontos são noções obtidas a partir da experiência pessoal, mas todos são (também e sobretudo) produtos da reflexão sobre a mentalidade contemporânea, observações da cultura e comportamento social de nossos dias e considerações de terceiros (imprensa, livros).
1.
Incentive e defenda os valores do individualismo, do egoísmo niilista e do hedonismo mais nefasto possível. Sublinhe a infelicidade das relações e a inclemência do mundo. Fomente a oposição e a negação em relação ao outro. Prometa sempre uma maior liberdade individual. Restrinja a liberdade individual através de complexos sistemas de alienação.
2.
Estimule a desconfiança e a difidência. Ressalte periodicamente a necessidade e utilidade desses sentimentos. Sugira e apóie a indiferença. Relativize problemas como a influência humana no equilíbrio ecológico.
3.
Desenvolva uma concorrência feroz e incondicional e justifique a desigualdade como sua consequência natural. Seja implacável com os fracos. Lembre Darwin. Cite apenas a minoria de sucesso.
4.
Desintelectualize tudo. Demonstre repetida e exaustivamente a futilidade de se adquirir conhecimento e a comodidade e conveniência da ignorância. Faça crer que qualquer forma de discernimento é prejudicial aos próprios interesses, desnecessária e que, em última instância, é perda de tempo. Enalteça a objetividade extrema, priorize as ciências exatas e promova uma desumanização do saber. Ridicularize a prudência, a solidariedade, a humildade e o interesse intelectual. Fique atento a novos talentos e arregimente-os, treine-os e enquadre-os — entretenha os demais.
5.
Mercantilize tudo, coisas e relações. Demonstre a inocuidade da corrupção moral. Promova o desvio ético mas defenda o sistema de comportamento. Ofereça novidades sob qualquer forma e estimule a necessidade delas. Faça venerar o mercado: incremente suas vantagens, esconda seus danos e o controle artificialmente. Enalteça o poder econômico e o dinheiro. Valorize a noção de serviço e satisfação pessoal.
6.
Estruture uma alienação quase total do poder, impedindo o exercício direto da vontade coletiva e individual. Crie instituições, entidades e personalidades jurídicas. Estabeleça hierarquias e burocracias. Constrinja à “fidelidade simbólica”, ou seja, o sentimento honroso e de gratidão em relação às instituições constituídas com o escopo de receber essa fidelidade. Desenvolva, amplifique, defenda e difunda o valor de “cumprimento do dever”. Incentive a identificação e o orgulho patriótico (regional, nacional ou em qualquer outro âmbito), bem como étnico, cultural ou de classe. Ofereça recompensas e premiações, incite à dedicação e ao sacrifício pessoal, mas monopolize a concessão de legitimidade. Crie símbolos que vinculem o grupo à entidade que deve concentrar a atenção. Apóie-se na tradição ou a ataque pormenorizadamente.
7.
Controle posições estratégicas da produção de bens simbólicos, dos sistemas mais complexos ao mais simples — a ideologia direcionada tende a se reproduzir autonomamente baseada na ignorância e na preguiça. Domine ambientes acadêmicos, profissionais de áreas importantes e meios de produção e sobretudo de comunicação. Manipule o conhecimento e a circulação de informação. Influencie decisões de alcance coletivo. (Impeça a aglomeração negativa: retire bancos das praças e dos campus universitários. Promova a aglomeração positiva: valorize bancos e praças de alimentação em shopping centers.)
8.
Desacredite posições antagônicas. Promova a desqualificação do interlocutor. Marginalize e ridicularize os opositores. Aplique penas e sanções severas e sistemáticas. Evite a propagação da oposição. Impeça o desenvolvimento de vias alternativas. Incentive idéias contraproducentes, mal-intencionadas e/ou deliberadamente errôneas e favoreça a difusão de equívocos sinceros.
9.
Confunda, disperse, despiste. Dificulte ao máximo o estabelecimento de conexões e relações. Desvie a atenção dos detalhes ou forje detalhes fictícios. Valorize a religião como sistema de valores coletivos e inalteráveis. Incremente substancialmente a importância de assuntos periféricos. Crie mitos e cenários artificiais. Invente inimigos. Difunda ruídos. Não mostre-se: permaneça anônimo e estabeleça bodes expiatórios.
10.
[Utilizando todos os preceitos acima mencionados] Identifique uma casta (ou grupo de castas), proteja-a e estimule o confronto entre todos os grupos da sociedade. Estabeleça rivalidades e ressentimentos. Ataque o sentido de coletividade e solidariedade mas fomente um sistema de colaboração ao interno da casta.
É possível que este texto sofra edições na intenção de atualizá-lo e completá-lo. Comentários, críticas, acréscimos e ponderações serão sempre bem-vindos.
De qualquer forma, aqui estão 10 preceitos básicos de como exercer um poder em nossos dias. Exercer aqui tem o sentido de manter um poder (ou vários concomitantemente), não necessariamente o poder. Me refiro em especial ao mais sofisticado poder de nosso tempo, que é o controle social, mas penso que tenha validade em vários outros campos. É caso de ideologia, mas na sua forma mais básica e menos visível possível, ao mesmo tempo em que essa ideologia colabora para fazer desse poder o mais ilimitado que se tenha conhecido até agora. Alguns dos 10 pontos são noções obtidas a partir da experiência pessoal, mas todos são (também e sobretudo) produtos da reflexão sobre a mentalidade contemporânea, observações da cultura e comportamento social de nossos dias e considerações de terceiros (imprensa, livros).
1.
Incentive e defenda os valores do individualismo, do egoísmo niilista e do hedonismo mais nefasto possível. Sublinhe a infelicidade das relações e a inclemência do mundo. Fomente a oposição e a negação em relação ao outro. Prometa sempre uma maior liberdade individual. Restrinja a liberdade individual através de complexos sistemas de alienação.
2.
Estimule a desconfiança e a difidência. Ressalte periodicamente a necessidade e utilidade desses sentimentos. Sugira e apóie a indiferença. Relativize problemas como a influência humana no equilíbrio ecológico.
3.
Desenvolva uma concorrência feroz e incondicional e justifique a desigualdade como sua consequência natural. Seja implacável com os fracos. Lembre Darwin. Cite apenas a minoria de sucesso.
4.
Desintelectualize tudo. Demonstre repetida e exaustivamente a futilidade de se adquirir conhecimento e a comodidade e conveniência da ignorância. Faça crer que qualquer forma de discernimento é prejudicial aos próprios interesses, desnecessária e que, em última instância, é perda de tempo. Enalteça a objetividade extrema, priorize as ciências exatas e promova uma desumanização do saber. Ridicularize a prudência, a solidariedade, a humildade e o interesse intelectual. Fique atento a novos talentos e arregimente-os, treine-os e enquadre-os — entretenha os demais.
5.
Mercantilize tudo, coisas e relações. Demonstre a inocuidade da corrupção moral. Promova o desvio ético mas defenda o sistema de comportamento. Ofereça novidades sob qualquer forma e estimule a necessidade delas. Faça venerar o mercado: incremente suas vantagens, esconda seus danos e o controle artificialmente. Enalteça o poder econômico e o dinheiro. Valorize a noção de serviço e satisfação pessoal.
6.
Estruture uma alienação quase total do poder, impedindo o exercício direto da vontade coletiva e individual. Crie instituições, entidades e personalidades jurídicas. Estabeleça hierarquias e burocracias. Constrinja à “fidelidade simbólica”, ou seja, o sentimento honroso e de gratidão em relação às instituições constituídas com o escopo de receber essa fidelidade. Desenvolva, amplifique, defenda e difunda o valor de “cumprimento do dever”. Incentive a identificação e o orgulho patriótico (regional, nacional ou em qualquer outro âmbito), bem como étnico, cultural ou de classe. Ofereça recompensas e premiações, incite à dedicação e ao sacrifício pessoal, mas monopolize a concessão de legitimidade. Crie símbolos que vinculem o grupo à entidade que deve concentrar a atenção. Apóie-se na tradição ou a ataque pormenorizadamente.
7.
Controle posições estratégicas da produção de bens simbólicos, dos sistemas mais complexos ao mais simples — a ideologia direcionada tende a se reproduzir autonomamente baseada na ignorância e na preguiça. Domine ambientes acadêmicos, profissionais de áreas importantes e meios de produção e sobretudo de comunicação. Manipule o conhecimento e a circulação de informação. Influencie decisões de alcance coletivo. (Impeça a aglomeração negativa: retire bancos das praças e dos campus universitários. Promova a aglomeração positiva: valorize bancos e praças de alimentação em shopping centers.)
8.
Desacredite posições antagônicas. Promova a desqualificação do interlocutor. Marginalize e ridicularize os opositores. Aplique penas e sanções severas e sistemáticas. Evite a propagação da oposição. Impeça o desenvolvimento de vias alternativas. Incentive idéias contraproducentes, mal-intencionadas e/ou deliberadamente errôneas e favoreça a difusão de equívocos sinceros.
9.
Confunda, disperse, despiste. Dificulte ao máximo o estabelecimento de conexões e relações. Desvie a atenção dos detalhes ou forje detalhes fictícios. Valorize a religião como sistema de valores coletivos e inalteráveis. Incremente substancialmente a importância de assuntos periféricos. Crie mitos e cenários artificiais. Invente inimigos. Difunda ruídos. Não mostre-se: permaneça anônimo e estabeleça bodes expiatórios.
10.
[Utilizando todos os preceitos acima mencionados] Identifique uma casta (ou grupo de castas), proteja-a e estimule o confronto entre todos os grupos da sociedade. Estabeleça rivalidades e ressentimentos. Ataque o sentido de coletividade e solidariedade mas fomente um sistema de colaboração ao interno da casta.
É possível que este texto sofra edições na intenção de atualizá-lo e completá-lo. Comentários, críticas, acréscimos e ponderações serão sempre bem-vindos.
20 maio 2010
O "COMUNICADOR" 19:36
No último domingo a Internazionale se sagrou campeã italiana (quinto scudetto consecutivo) e se vencer a Liga dos Campeões no próximo sábado, em Madri, contra o Bayern, José Mourinho deixa o futebol italiano. Deve levar sua rabugice e soberba para a capital da Espanha. É o que eu penso como jornalista e amante de futebol e seria capaz de apostar, digamos, 12 decadentes euros nisso. Também acho que, caso o clube de Milão perca essa final, o português vai embora da mesma forma. Meu palpite se apóia numa única verdade: Mourinho odeia a Itália — e, às vezes, parece odiar tudo que se mova ou respire.
Mourinho — digo isso de forma respeitosa e estudada — é um quase perfeito idiota. Não por odiar a Itália, que isso cada um é livre de fazer, mas por pensar que o futebol é mais um daqueles setores da vida humana (o enésimo) em que para ascender é preciso pisar no outro, rebaixá-lo, demonizá-lo, ridicularizá-lo, sobrepujá-lo, que se não o fizer antes alguém o fará mais cedo ou mais tarde e agir em função dessa preocupação. Natural que seja o pensamento dominante, na medida em que o mundo (salvo exceções honrosas) é uma grande porcaria exatamente porque esse pensamento é dominante. Mas o futebol é um jogo, fatalmente haverá vencedores e vencidos e se Mourinho não fosse praticamente um problema moral ambulante confiaria na sua imensa capacidade e qualidade e nos pouparia de um veneno que é muito comum em vários campos da existência, mas que no futebol não é assim tão frequente.
Não me entendam errado: não me julgo o defensor da moralidade e não estou querendo fazer de Mourinho um crápula absoluto. Acho apenas que ele sintetiza uma idéia. Uma idéia errada, pouco nobre (para dizer o mínimo), por mais que seja — e é — um fantástico técnico de futebol. Essa idéia, penso, quando aplicada ao mundo do business, ou na selva tropical, pode ser que dê muitos bons resultados, mas quando colocada no miolo do futebol acaba por turbá-lo.
Na Itália, o português se deu ao luxo de fazer coisas que não se permitia na Inglaterra, e isso diz muito sobre ele próprio e sobre os dois países, com aspectos positivos e negativos. A visão que se tem de Mourinho aqui é bastante complexa, mas poderia ser resumida em três noções básicas, às vezes intercruzadas numa mesma pessoa. 1) A veneração cega que “camufla” um comportamento duvidoso sob um manto de “polêmica” (“Mourinho é um grande comunicador”, é a frase favorita dessa facção). Para algumas pessoas, o técnico da Inter é um acréscimo ao futebol italiano porque vence e “tempera”, e ponto final. 2) Uma admiração distanciada, considerando que para o futebol vale a regra da concorrência “vença ou fique para trás”. Mourinho é um mal necessário. 3) Reprovação moral. Para Sandro Mazzola, ícone do calcio, por exemplo, fica difícil reconhecer o valor do esporte no comportamento do português. A melhor coisa a fazer então é uma distinção claríssima entre a pessoa e o profissional.
Talvez seja ranço de um velho que jogou “nos tempos do upa!” — e que tende por isso a interpretar o futebol moderno através de uma tecla SAP —, mas Mazzola foi um dos poucos a afrontar Mourinho nesses dois anos em que o português vive na Itália. Um dia, criticou o técnico da Inter por uma escolha tática. E voltou a fazê-lo depois que Mourinho deu o ar da graça, sendo agressivo e arrogante. O português perguntou em tom provocatório: “Mazzola por acaso é meu chefe?”. O velho jogador, que agora é um competente comentarista da Rai, devolveu: “Sou acionista da Inter. Sou sim. Também”. Mourinho não nos forneceu uma resposta. Raro.
Tudo bem que vença, que seja um dos profissionais mais bem pagos do planeta — é competente, estudioso, tem qualidade e é fiel ao seu grupo e aos seus em geral. Mas Mourinho, como disse, sintetiza um sentimento ruim para o futebol e para se exibir por aí. No início achei que poderia ser pieguice minha, depois percebi que mais gente via a questão assim. Não poucos. Talvez a chave da explicação seja a que sugeriu Jaime Pacheco, que inclusive e ao menos merece alguma consideração por ter feito do Boavista campeão português em 2001. Acho que ele tem razão.
Mourinho — digo isso de forma respeitosa e estudada — é um quase perfeito idiota. Não por odiar a Itália, que isso cada um é livre de fazer, mas por pensar que o futebol é mais um daqueles setores da vida humana (o enésimo) em que para ascender é preciso pisar no outro, rebaixá-lo, demonizá-lo, ridicularizá-lo, sobrepujá-lo, que se não o fizer antes alguém o fará mais cedo ou mais tarde e agir em função dessa preocupação. Natural que seja o pensamento dominante, na medida em que o mundo (salvo exceções honrosas) é uma grande porcaria exatamente porque esse pensamento é dominante. Mas o futebol é um jogo, fatalmente haverá vencedores e vencidos e se Mourinho não fosse praticamente um problema moral ambulante confiaria na sua imensa capacidade e qualidade e nos pouparia de um veneno que é muito comum em vários campos da existência, mas que no futebol não é assim tão frequente.
Não me entendam errado: não me julgo o defensor da moralidade e não estou querendo fazer de Mourinho um crápula absoluto. Acho apenas que ele sintetiza uma idéia. Uma idéia errada, pouco nobre (para dizer o mínimo), por mais que seja — e é — um fantástico técnico de futebol. Essa idéia, penso, quando aplicada ao mundo do business, ou na selva tropical, pode ser que dê muitos bons resultados, mas quando colocada no miolo do futebol acaba por turbá-lo.
Na Itália, o português se deu ao luxo de fazer coisas que não se permitia na Inglaterra, e isso diz muito sobre ele próprio e sobre os dois países, com aspectos positivos e negativos. A visão que se tem de Mourinho aqui é bastante complexa, mas poderia ser resumida em três noções básicas, às vezes intercruzadas numa mesma pessoa. 1) A veneração cega que “camufla” um comportamento duvidoso sob um manto de “polêmica” (“Mourinho é um grande comunicador”, é a frase favorita dessa facção). Para algumas pessoas, o técnico da Inter é um acréscimo ao futebol italiano porque vence e “tempera”, e ponto final. 2) Uma admiração distanciada, considerando que para o futebol vale a regra da concorrência “vença ou fique para trás”. Mourinho é um mal necessário. 3) Reprovação moral. Para Sandro Mazzola, ícone do calcio, por exemplo, fica difícil reconhecer o valor do esporte no comportamento do português. A melhor coisa a fazer então é uma distinção claríssima entre a pessoa e o profissional.
Talvez seja ranço de um velho que jogou “nos tempos do upa!” — e que tende por isso a interpretar o futebol moderno através de uma tecla SAP —, mas Mazzola foi um dos poucos a afrontar Mourinho nesses dois anos em que o português vive na Itália. Um dia, criticou o técnico da Inter por uma escolha tática. E voltou a fazê-lo depois que Mourinho deu o ar da graça, sendo agressivo e arrogante. O português perguntou em tom provocatório: “Mazzola por acaso é meu chefe?”. O velho jogador, que agora é um competente comentarista da Rai, devolveu: “Sou acionista da Inter. Sou sim. Também”. Mourinho não nos forneceu uma resposta. Raro.
Tudo bem que vença, que seja um dos profissionais mais bem pagos do planeta — é competente, estudioso, tem qualidade e é fiel ao seu grupo e aos seus em geral. Mas Mourinho, como disse, sintetiza um sentimento ruim para o futebol e para se exibir por aí. No início achei que poderia ser pieguice minha, depois percebi que mais gente via a questão assim. Não poucos. Talvez a chave da explicação seja a que sugeriu Jaime Pacheco, que inclusive e ao menos merece alguma consideração por ter feito do Boavista campeão português em 2001. Acho que ele tem razão.
Foto: AFP
18 maio 2010
CARROS 17:45
A Itália é o segundo país mais motorizado do mundo, atrás apenas dos “pais fundadores” americanos. São pouco mais de 60 carros para cada 100 habitantes, enquanto a média européia (em dados de 2008) é de 46. Não surpreende portanto que uma de minhas primeiras surpresas quando cheguei aqui tenha sido a quantidade de automóveis circulando, mas sobretudo estacionados — nas calçadas, na faixa central, sobre os canteiros, praças e qualquer espaço exíguo e, muitas vezes, irregular. Um amigo um dia me disse a título de brincadeira que seria um favor se algum meliante brasileiro fizesse “desaparecer” alguns carros da rua em que mora.
O problema é crônico na medida em que a questão não se resume ao trânsito como efeito colateral do espaço urbano. É uma questão de comportamento. Sempre que me vem à mente esse assunto me recordo do “episódio do estacionamento norueguês (ou sueco ou dinamarquês, não lembro bem)” que meu camarada Eduardo Delamare me contou certa vez e que me causou grande impressão. Uma sua amiga, norueguesa (ou sueca ou dinamarquesa), ainda criança pequena, um dia acompanhou o pai ao trabalho. Iam de carro e, chegando muito cedo ao local, encontraram o pátio do estacionamento completamente vazio. O pai então manobra o automóvel sobre uma vaga muito distante da porta que dá acesso aos funcionários. A filha lhe pergunta intrigada se não seria melhor deixar o carro mais próximo da porta, assim não teriam de caminhar. O pai então lhe explicou a filosofia escandinava: “Nós, que chegamos muito antes, deixamos as vagas mais próximas a quem, por algum motivo, tenha se atrasado. Quando chegarem encontrarão livres as vagas mais próximas. E eles sabem disso. Hoje vai acontecer com um outro, mas amanhã pode ser comigo e eu ficarei grato a quem fizer assim”.
Essa mentalidade explica também o que vi num brilhante programa jornalístico televisivo semanal chamado Report, veiculado pela Rai 3. O assunto de duas semanas atrás foi o que me motivou a escrever essas linhas: os carros e a ligação que têm com dois temas urgentes da atualidade (energia e urbanismo). Partindo do problema energético, da saturação do mercado europeu do automóvel e da caótica situação urbana no que diz respeito à mobilidade, a reportagem foi até Malmöe (uma cidade universitária de grande porte bem em frente à capital da Dinamarca) e a Hamburgo. Ali, as políticas públicas de transporte (privado e coletivo) são tão bem executadas que, mesmo sob o frio escandinavo, as pessoas se sentem satisfeitas em dividir automóveis alugados, montar esquemas de caronas, utilizar ônibus, construir estacionamentos coletivos como garagem e, principalmente, usar a bicicleta para se locomover.
Então me lembrei de um medievalista francês que tenho lido nos últimos meses. Michel Pastoureau diz que “tudo é cultural” em matéria humana. Evidentemente não quer dizer que absolutamente tudo é cultural, mas se se exclui a idéia de biológico e físico, o que resta é a dimensão psicológica, antropológica, sociológica e etnológica — e isso é cultural. Me veio à mente porque, nessa relação nossa com o automóvel, entre as visões escandinava e americana, por exemplo, existe uma distância que deveria ser medida em anos-luz. Os valores americanos nos ensinam que é a propriedade de um veículo a conferir alguma distinção para as pessoas. Quanto melhor o veículo, melhor a distinção. Quanto mais veículos, mais distinção. De acordo com o uso que se faz desse veículo, se atribui um tipo mais nobre ou mais comum de distinção. A noção “escandinava”, me parece, introduz um conceito “maluco” nessa história toda: utilidade. O que importa é a locomoção, o transporte, e talvez por isso ninguém se chateie muito com a condição do carro que te leva de casa para o trabalho. Iniciando com a mentalidade referente ao objeto carro, podemos chegar mais facilmente à solução do problema maior que ele causa.
Obviamente não quero dizer que ninguém na Escandinávia ou na Baixa Saxônia se importa com a qualidade do seu automóvel, ou se é mais bonito ou menos “bacana”. Acho apenas — e isso salta aos olhos de quem vê — que são os valores muitas vezes a definir uma questão como essa. A nossa relação com o automóvel, à parte algum caso “freak” do norte da Europa e poucos outros pontos do globo, é filha daquela mentalidade doentia — sobretudo americana — de vaidade fútil, competição e de absoluto afastamento da noção de utilidade das coisas e das “condições de uso” dos recursos do planeta.
O problema é crônico na medida em que a questão não se resume ao trânsito como efeito colateral do espaço urbano. É uma questão de comportamento. Sempre que me vem à mente esse assunto me recordo do “episódio do estacionamento norueguês (ou sueco ou dinamarquês, não lembro bem)” que meu camarada Eduardo Delamare me contou certa vez e que me causou grande impressão. Uma sua amiga, norueguesa (ou sueca ou dinamarquesa), ainda criança pequena, um dia acompanhou o pai ao trabalho. Iam de carro e, chegando muito cedo ao local, encontraram o pátio do estacionamento completamente vazio. O pai então manobra o automóvel sobre uma vaga muito distante da porta que dá acesso aos funcionários. A filha lhe pergunta intrigada se não seria melhor deixar o carro mais próximo da porta, assim não teriam de caminhar. O pai então lhe explicou a filosofia escandinava: “Nós, que chegamos muito antes, deixamos as vagas mais próximas a quem, por algum motivo, tenha se atrasado. Quando chegarem encontrarão livres as vagas mais próximas. E eles sabem disso. Hoje vai acontecer com um outro, mas amanhã pode ser comigo e eu ficarei grato a quem fizer assim”.
Essa mentalidade explica também o que vi num brilhante programa jornalístico televisivo semanal chamado Report, veiculado pela Rai 3. O assunto de duas semanas atrás foi o que me motivou a escrever essas linhas: os carros e a ligação que têm com dois temas urgentes da atualidade (energia e urbanismo). Partindo do problema energético, da saturação do mercado europeu do automóvel e da caótica situação urbana no que diz respeito à mobilidade, a reportagem foi até Malmöe (uma cidade universitária de grande porte bem em frente à capital da Dinamarca) e a Hamburgo. Ali, as políticas públicas de transporte (privado e coletivo) são tão bem executadas que, mesmo sob o frio escandinavo, as pessoas se sentem satisfeitas em dividir automóveis alugados, montar esquemas de caronas, utilizar ônibus, construir estacionamentos coletivos como garagem e, principalmente, usar a bicicleta para se locomover.
Então me lembrei de um medievalista francês que tenho lido nos últimos meses. Michel Pastoureau diz que “tudo é cultural” em matéria humana. Evidentemente não quer dizer que absolutamente tudo é cultural, mas se se exclui a idéia de biológico e físico, o que resta é a dimensão psicológica, antropológica, sociológica e etnológica — e isso é cultural. Me veio à mente porque, nessa relação nossa com o automóvel, entre as visões escandinava e americana, por exemplo, existe uma distância que deveria ser medida em anos-luz. Os valores americanos nos ensinam que é a propriedade de um veículo a conferir alguma distinção para as pessoas. Quanto melhor o veículo, melhor a distinção. Quanto mais veículos, mais distinção. De acordo com o uso que se faz desse veículo, se atribui um tipo mais nobre ou mais comum de distinção. A noção “escandinava”, me parece, introduz um conceito “maluco” nessa história toda: utilidade. O que importa é a locomoção, o transporte, e talvez por isso ninguém se chateie muito com a condição do carro que te leva de casa para o trabalho. Iniciando com a mentalidade referente ao objeto carro, podemos chegar mais facilmente à solução do problema maior que ele causa.
Obviamente não quero dizer que ninguém na Escandinávia ou na Baixa Saxônia se importa com a qualidade do seu automóvel, ou se é mais bonito ou menos “bacana”. Acho apenas — e isso salta aos olhos de quem vê — que são os valores muitas vezes a definir uma questão como essa. A nossa relação com o automóvel, à parte algum caso “freak” do norte da Europa e poucos outros pontos do globo, é filha daquela mentalidade doentia — sobretudo americana — de vaidade fútil, competição e de absoluto afastamento da noção de utilidade das coisas e das “condições de uso” dos recursos do planeta.