18 maio 2010

CARROS

A Itália é o segundo país mais motorizado do mundo, atrás apenas dos “pais fundadores” americanos.  São pouco mais de 60 carros para cada 100 habitantes, enquanto a média européia (em dados de 2008) é de 46. Não surpreende portanto que uma de minhas primeiras surpresas quando cheguei aqui tenha sido a quantidade de automóveis circulando, mas sobretudo estacionados — nas calçadas, na faixa central, sobre os canteiros, praças e qualquer espaço exíguo e, muitas vezes, irregular. Um amigo um dia me disse a título de brincadeira que seria um favor se algum meliante brasileiro fizesse “desaparecer” alguns carros da rua em que mora.

O problema é crônico na medida em que a questão não se resume ao trânsito como efeito colateral do espaço urbano. É uma questão de comportamento. Sempre que me vem à mente esse assunto me recordo do “episódio do estacionamento norueguês (ou sueco ou dinamarquês, não lembro bem)” que meu camarada Eduardo Delamare me contou certa vez e que me causou grande impressão. Uma sua amiga, norueguesa (ou sueca ou dinamarquesa), ainda criança pequena, um dia acompanhou o pai ao trabalho. Iam de carro e, chegando muito cedo ao local, encontraram o pátio do estacionamento completamente vazio. O pai então manobra o automóvel sobre uma vaga muito distante da porta que dá acesso aos funcionários. A filha lhe pergunta intrigada se não seria melhor deixar o carro mais próximo da porta, assim não teriam de caminhar. O pai então lhe explicou a filosofia escandinava: “Nós, que chegamos muito antes, deixamos as vagas mais próximas a quem, por algum motivo, tenha se atrasado. Quando chegarem encontrarão livres as vagas mais próximas. E eles sabem disso. Hoje vai acontecer com um outro, mas amanhã pode ser comigo e eu ficarei grato a quem fizer assim”.

Essa mentalidade explica também o que vi num brilhante programa jornalístico televisivo semanal chamado Report, veiculado pela Rai 3. O assunto de duas semanas atrás foi o que me motivou a escrever essas linhas: os carros e a ligação que têm com dois temas urgentes da atualidade (energia e urbanismo). Partindo do problema energético, da saturação do mercado europeu do automóvel e da caótica situação urbana no que diz respeito à mobilidade, a reportagem foi até Malmöe (uma cidade universitária de grande porte bem em frente à capital da Dinamarca) e a Hamburgo. Ali, as políticas públicas de transporte (privado e coletivo) são tão bem executadas que, mesmo sob o frio escandinavo, as pessoas se sentem satisfeitas em dividir automóveis alugados, montar esquemas de caronas, utilizar ônibus, construir estacionamentos coletivos como garagem e, principalmente, usar a bicicleta para se locomover.

Então me lembrei de um medievalista francês que tenho lido nos últimos meses. Michel Pastoureau diz que “tudo é cultural” em matéria humana. Evidentemente não quer dizer que absolutamente tudo é cultural, mas se se exclui a idéia de biológico e físico, o que resta é a dimensão psicológica, antropológica, sociológica e etnológica — e isso é cultural. Me veio à mente porque, nessa relação nossa com o automóvel, entre as visões escandinava e americana, por exemplo, existe uma distância que deveria ser medida em anos-luz. Os valores americanos nos ensinam que é a propriedade de um veículo a conferir alguma distinção para as pessoas. Quanto melhor o veículo, melhor a distinção. Quanto mais veículos, mais distinção. De acordo com o uso que se faz desse veículo, se atribui um tipo mais nobre ou mais comum de distinção. A noção “escandinava”, me parece, introduz um conceito “maluco” nessa história toda: utilidade. O que importa é a locomoção, o transporte, e talvez por isso ninguém se chateie muito com a condição do carro que te leva de casa para o trabalho. Iniciando com a mentalidade referente ao objeto carro, podemos chegar mais facilmente à solução do problema maior que ele causa.

Obviamente não quero dizer que ninguém na Escandinávia ou na Baixa Saxônia se importa com a qualidade do seu automóvel, ou se é mais bonito ou menos “bacana”. Acho apenas — e isso salta aos olhos de quem vê — que são os valores muitas vezes a definir uma questão como essa. A nossa relação com o automóvel, à parte algum caso “freak” do norte da Europa e poucos outros pontos do globo, é filha daquela mentalidade doentia — sobretudo americana — de vaidade fútil, competição e de absoluto afastamento da noção de utilidade das coisas e das “condições de uso” dos recursos do planeta.

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